sexta-feira, 8 de maio de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (XIII)

A pandemia e a iniquidade humana pelo olhar da imprensa
A Alemanha começou seu lockdown em meados de março, justamente quando a gente iniciava nossa quarentena tabajara, padrão nacional, ou seja, meia boca. Hoje, começa a liberar tráfego, gente na rua e até o campeonato de futebol, que pode iniciar daqui a uma semana.
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Pelo jornal da rádio Band News ouço a notícia de que em Belém do Pará, após o lockdown , o prefeito local considerou como “essencial” o trabalho das empregadas domésticas. Não se trata de nenhum reconhecimento ao suado, sofrido e digno trabalho das domésticas, mas, ao contrário, de uma medida do “pouco se lixando” contra trabalhadoras que, diferente da maioria das pessoas, recolhidas em casa para preservação da própria vida, vão furar os bloqueios de Belém para levar a uma gente egoísta e mesquinha os serviços que podem, muito bem, ser exercidos pelos donos e donas de casa. Neste momento e nestas condições, o trabalho das domésticas não é essencial, se comparado ao indispensável trabalho de médicos, enfermeiros e técnicos da área de saúde. O Brasil não se envergonha de ser o Brasil de sempre. Pelo andar dos 520 anos, nunca teremos vergonha de nada.
Se comparados com a Alemanha, é outro 7 a 1 que a gente toma deles.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (XII)


O chamado brasileiro médio é uma abstração construída pelos sociólogos e que representa não esse tipo bonachão, simpático, o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda ou o de Belchior, aquele que diz sempre “com licença, por favor”. Nosso brasileiro em questão é o mais corriqueiro, aquele que existe desde Cabral e que o jogador Gérson celebrizou no famigerado comercial do cigarro Vila Rica (“o importante é levar vantagem”), estabelecendo desde então a lastimável Lei de Gérson, a única que a classe média brasileira cumpre com devoção canina. Os mais ricos e mais pobres também têm o mesmo apreço para a tal lei, que significa a adoção do salve-se quem puder em todos os campos da vida.
Assim somos desde sempre, para ilustrar nossa ignorância, ausência de protocolos, desrespeito ao próximo e egoísmo criminoso. Na literatura, talvez Nelson Rodrigues tenha sido quem melhor descreveu nossas iniquidades. Agora pulemos para a vida real da pandemia.
No Mosqueiro há um supermercado antes chamado de Pão de Açúcar, embora de nome pretensioso, um simpático mercadinho frequentado pela gente simples do lugar e os passantes melhor providos. Após a chegada do “verdadeiro” Pão de Açúcar em Sergipe, o proprietário, rapaz simples, conterrâneo meu de Macambira, logo tratou de rebatizar seu negócio para Paseo, que não sei o que significa, mas ele, certamente, sabe o que significa peitar os tubarões da gigante fundada por Abílio Diniz.
Nesses dias de pangonia nossas compras são nervosas, com olhos tensos para quem passa por nós raspando a tinta e espalhando vírus no ar. Infelizmente, lá no Paseo, como em qualquer lugar, pais e mães irresponsáveis ainda insistem em levar filhos pequenos para esses passeios, com o perdão do trocadilho. Sabe-se lá o que explica pais levarem crianças numa ida ao supermercado, mas o fato é que muitos não acham isso, ou não se incomodam com a vida de seus pequenos e do resto das pessoas. Daí, ignoram os riscos que ambos representam num contato que poderia ser evitado.
Sábado passado, em meio ao mencionado nervosismo das compras, somos obrigados a desviar de um par de moleques malcriados, um deles já grande, jeitão de abobado, fazendo dos corredores do modesto Paseo o playground para brincadeira de criança pequena. No caixa, o responsável pelo retardo dos meninos, pai branco, cara de bem nascido, máscara na sua cara de mascarado e olhar furioso da classe média quando alguém ousa contrariar suas vontades. Ninguém ousou reclamar, mas muitos dirigiam o olhar de reprovação para o marombado pai, tão cioso de si, tão negligente com os outros.
Na porta do super, desconhecendo regras, desprezando o amplo e vazio estacionamento da empresa, um portentoso Audi preto aguardava completamente irregular, interrompendo o fluxo, prejudicando a mobilidade. Nada mais que um caso comum de trânsito, como cantava o mesmo Belchior, nossa classe média mal educada e arrogante, rasgando regras e cuspindo perdigotos em nossa cara. Pelo visto, seguirá sendo assim em mais outros 500 anos. Toca a vinheta: Brasil, zil, zil!

Anotações sobre o fim do mundo (XI)

Minha (triste) vida de cachorro com a Deso
Há 25 anos vim morar no Mosqueiro, na ponta final da Sarney, onde Judas perdeu as botas. Ninguém queria nem andar por aqui, imagine viver. Mas vi uma entrevista de Jane Fonda dizendo que dormia com um travesseiro com um simulador das ondas do mar e aí tomei a decisão que há tempos pretendia: vim morar no mar. Não é um mar de Pessoa ou dos bem nascidos (e melhor vividos) do Morada da Praia, I e II. O condomínio onde me escondo foi assim descrito pelo jornalista Zenóbio Melo numa visita que me fez, para alguma rodada de grogue certamente, há uns 15 anos: “porra, eu pensei que você morava num condomínio da Sarney. Isso aqui é o Marcos Freire IV”.
Além de fazer parte da série D, no dizer do linguarudo Zenóbio, não recebíamos sequer os vapores da então preciosa água da Deso. Todos tínhamos que recorrer a poços artesianos que nos ofereciam diariamente água, barro e ferro, este último diluído nas duas substâncias. Como tal estatal é mal afamada desde os tempos do nosso fundador Cristóvão de Barros, instalei uma geringonça tecnológica que separava a água que jogava no jardim e outra que era filtrada por carvões e mecanismos da engenharia, para ter o moderno direito a uma água capaz de lavar um copo. Investimento de uns dois pilas.
Anos depois a sempre mal afamada Deso descobriu que já era lucrativo expandir seus negócios pras bandas da Sarney, numa visão social parecida com o atual ministro da Economia, o Posto Ipiranga, que nesse momento frita no caco de Satanás. Instalada no Condado do Mosqueiro, assim nomeado pelo teatrólogo Jorge Lins, aspirante a Conde, sempre tivemos um casamento como todos, ou seja: mais desamor do que harmonia. Até que um dia... até que muitas vezes ficamos a mercê de seus descasos, literalmente desabastecidos.
Nesta semana que este domingo enterra, a famigerada Deso achou pouco sua trajetória de malfeitora e nos aplicou dois violentos golpes de uma só vez: além de provocar o célebre “a água não está subindo”, ainda nos entregou boletos com reajustes de, no meu caso, 100%. Sem uma notícia, uma advertência que fosse, para evitar infartos e crises de fúria, a caixa-preta estatal piorou os serviços e aumentou o preço da má prestação. Para uma empresa com visão social Posto Ipiranga, era o único jeito dela participar da agonia da pandemia. Senão, não seria a Deso.

Anotações sobre o fim do mundo (X)

Em 1928, pouco antes da Revolução de 30, os conspiradores se articulavam dentro e fora do país. Oscar Pedroso Horta, jornalista do Diário da Noite, depois Estado de S. Paulo, faz uma perigosa viagem de monomotor de Santos a Porto Alegre e depois a Montevidéu, para levar uma encomenda de alguns mapas estratégicos para o movimento. Foi à pedido de Siqueira Campos, ele mesmo, o do movimento tenentista, herói do Forte de Copacabana e membro da Coluna Prestes, esse que dá nome a um importante bairro de Aracaju. Deveria entregar os tais mapas a Prestes, exilado no Uruguai. E agora é ele, Pedroso Horta, quem conta, a Sebastião Nery, no seu “Ninguém me contou, Eu vi”:
De repente, mal eu chegava, aparece no hotel um homenzinho muito magro e muito feio, calçado em botinas de elástico:
- Sou o comandante Luís Carlos Prestes.
Percebi logo que era um agente da polícia brasileira.
- O senhor não é Oscar Pedroso Horta?
- Sou.
- Não trouxe uma encomenda de São Paulo para mim?
- Não o conheço. Estou aqui a negócios, não trouxe nada.
O homenzinho muito magro e muito feio foi embora. Tratei logo de trocar de hotel. Peguei um táxi e fui ao endereço de Luís Carlos Prestes. Lá, para espanto meu, encontrei exatamente o homenzinho muito magro e muito feio. Era ele mesmo.

Anotações sobre o fim do mundo (IX)

Ainda do livro Ninguém Me Contou, Eu Vi, de Sebastião Nery, em entrevista com Hélio Fernandes, da lendária Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, o irmão de Millor conta que Golbery, o diabólico general que encantava até gente de esquerda (Glauber Rocha o chamou de gênio de raça, certa vez), era muito amigo de Carlos Lacerda. Mas brigaram no episódio do movimento para não dar posse ao presidente João Goulart. Jango, como se sabe, era o vice de Jânio, o tresloucado que renunciou pensando que o povo ia chamá-lo de volta. Como isto não se deu, e Goulart era temido pelos militares + UDN e a totalidade da burguesia nacional, começou uma conspiração para não permitir a posse de Jango, que, no dia da renúncia do presidente, estava em viagem à China. Como divergissem nas estratégias desse outro golpe, de amigos fraternos viraram inimigos figadais. Diz Hélio Fernandes, sobre o tal gênio da raça:
“Golbery só tinha uma meta e um objetivo no governo, que era liquidar a candidatura Lacerda. Golbery passa 24 horas por dia sem fazer nada, a não ser pensando em maldade contra alguém, para destruir alguém. Ele não tem nenhuma ideia construtiva. Nunca teve uma. O livro dele sobre geopolítica é terrivelmente cansativo, não tem nada de geopolítica, não tem nada de literatura. Tem apenas o número de páginas. Se fosse impresso em branco era a mesma coisa. Ele é um gênio da maldade.”

Banese, um banco kafkiano

O escritor tcheco Franz Kafka, autor, dentre tantas obras célebres de “A Metamorfose”, ficou conhecido pela complexidade de situações que atravessam seus enredos, explorando mecanismos psicológicos considerados absurdos. Dessa visão da vida em sua obra resultou o adjetivo “kafkiano” para designar absurdos, irracionalidades etc. Em terras sergipanas, um modesto banco estadual exibe doses fartas do escritor tcheco na sua agência do Calçadão da rua João Pessoa, pomposamente chamada de Magazine. Desde outubro passado este modesto locutor que vos fala aceitou a espinhosa missão de responder pela administração do condomínio onde me escondo há 25 anos. Desde outubro faço pagamentos mensais, por cheque, esse objeto em extinção no resto do mundo. Mas, se o Banese quer cheque, tome-lhe cheque. Desde então, a tal agência Magazine desenvolve um divertido jogo contra essa alma indefesa. Divertido pra eles, os sádicos funcionários que operam aquela casa dos absurdos. Por algumas vezes tive que assinar novamente cheques encaminhados para pagamentos, por “divergência de assinatura”. Depois de assinar papéis por mais de quatro décadas, caixas da refrigerada Magazine decidem quando minhas firmas são verdadeiras ou falsas. Sabe-se lá quem, talvez Deus, concedeu poderes tão fortes aos desconfiados servidores. Como parte do jogo de diversão dos sádicos caixas, agora, depois de sete meses, resolveram que todo cheque deve trazer duas assinaturas, a desse infeliz síndico – profundamente infeliz! – e de novo personagem, o sub-síndico, que deve ser tirado do sossego de sua quarentena para rabiscar exigências de última hora, invenções inúteis da burocracia baneseana, novas regras do jogo inventado por eles. O resultado dessa história, para não cansá-los mais, é o acúmulo de dívidas, como se meu honesto e pontual condomínio fosse um reles mau pagador, um caloteiro da praça, irresponsável como as medidas de bancários déspotas que vivem de mandar à merda dos direitos do consumidor. O detalhes finais: desde antes da quarentena, dezenas e dezenas de vezes eu tentei falar por telefone com a metida agência, que, de tão convencida, jamais atendeu minhas desesperadas ligações. Agora, com o funcionamento meia-boca, é que não atendem mesmo. Procuro por gerentes, sub-gerentes, sub-subs, um simples contínuo que seja, mas meus gritos não são ouvidos. Sem comunicação por telefone, esse meio inventado ainda no século 19, imagine e-mails, zaps ou instas, essas modernidades que fazem os sub-subs baneseanos arderem de ojeriza. Ir pessoalmente, nem pensar: a repartição fechou. Resumindo, não há peste no mundo que consiga falar com os inacessíveis buRRocratas da agência Kafka, ops, Magazine. Vou cortar os pulsos. Ou mudar de banco.

Anotações sobre o fim do mundo (VIII)


A memória política do Brasil, por Sebastião Nery
Da biblioteca de Papai, leio "Leandro Maciel – Perante Sergipe", de J. Freire Ribeiro. Vale pela história do grande líder udenista, chefe político do Estado durante anos, até a fragorosa derrota para Gilvan Rocha em 74, nas célebres eleições em que o MDB elegeu uma caçambada de senadores pelo país. Mas é mais do mesmo, a crônica do poder, por um apaixonado militante da causa.
Em “Ninguém Me Contou, Eu Vi”, Sebastião Nery, baiano de Jaguaquara, ex-tudo na imprensa brasileira, ex-líder estudantil, vereador por Belo Horizonte, deputado estadual pela Bahia e federal pelo Rio, naquela fornalha eleita com Brizola em 1982, uma eleição também célebre, porque Brizola era a esquerda no Rio de Janeiro, com os principais intelectuais, artistas e todos os desejavam enterrar o “Chaguismo”, a corrente emedebista no Estado, tão governista que, mesmo numa ditadura, os militares deixaram o Rio sob o comando de Chagas Freitas, do MDB.
Tenho lido outras preciosidades do jornalista Nery, uma figura que depois fez suas escolhas, aderiu a Collor e foi adido cultural em Paris. Mas se o leitor for capaz de passar álcool gel nos preconceitos e focar tão somente no valor histórico, a leitura é uma mão cheia. Mesmo porque, antes do autor fazes tais opções, produziu uma densa obra, como um relato jornalístico por vários países socialistas nos anos 80. Funciona como uma radiografia ou um balanço, naquela quadra, do estágio e dos resultados dos governos socialistas no mundo inteiro.
Nery, antes de virar bicho na ótica da esquerda de plantão, teve uma longa trajetória nesse campo. Por essa época circulou em vários países os Cadernos do Terceiro Mundo, uma proposta interessante de jornalismo alternativo ao mainstream, às grandes agências de notícias e redes de televisão. Nery fez parte dessa história. Os Cadernos circulavam, que eu saiba, na África lusitana, toda a América Latina e, creio, nos países do leste europeu. Seu projeto editorial era liderado por Neiva Moreira, grande jornalista maranhense estabelecido no Rio, ligado a Brizola, que também foi deputado federal numa suplência. Conheci Neiva, que já o lia no Pasquim, nos meus tempos de Maranhão, na TV Difusora. Boa prosa, ele gostava de ir na redação para alguma entrevista ou apenas a troco da boa conversa. Uma figura.
Outro livro de Sebastião Nery é seu relato sobre a Revolução dos Cravos, a liberação portuguesa que pôs fim a 40 anos de Salazarismo, a ditadura encarnada em António de Oliveira Salazar, o equivalente português do ditador espanhol Francisco Franco. A riqueza do texto é o fato do jornalista cumprir aquela máxima da “testemunha ocular da História”, ou seja, ele tava em todos os lugares e na hora em que os fatos se desenrolavam. É incrível a capacidade desse jornalista estar sempre no lugar e na hora certos, em todas as suas coberturas. Na política brasileira não foi diferente e neste “Ninguém Me Contou, Eu Vi”, Nery só confirma o golpe de sorte ou de destreza: está em todas, mas não só observando, se não fazendo parte do enredo.
Para além de fazer um passeio por nossa história contemporânea pelo olhar não acadêmico, ou seja, de um jornalista de jornais, farejo a presença de sergipanos nessa história, que, a rigor, é a nossa história política no século passado. E a menção ao velho Leandro é porque é o único, ao lado de Seixas Dória, que aparece algumas vezes no livro. Outro que é citado algumas vezes é Joel Silveira, disparadamente o sergipano mais influente no cenário nacional no século XX, por tudo que foi e fez, íntimo do poder, mas de uma intimidade útil apenas para contar suas histórias, e não pelo poder em si. Joel, ao contrário, sempre foi um boêmio, desprendido de apegos e disposto mais a cultivar suas feéricas brigas com gente como Jorge Amado, dentre outros.
Mas causa espécie que só esses dois políticos, Leandro e Seixas, dois ex-governadores, apareçam no livro, já que Nery cobre um trecho que vai de Getúlio a Dilma. E, entre os sergipanos, ninguém mais consta. Ninguém é ninguém.
Leandro surge quando era virtualmente o candidato a vice na chapa de Jânio Quadros, o que seria um feito inédito para nossa invisibilidade política. Note-se que tivemos um pouco antes intelectuais absolutamente influentes e respeitados, como Silvio Romero e Gilberto Amado, mas na esfera estrita do poder o que tivemos de mais prestigiado foi a presença de Lourival Fontes no famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas, o DIP da repressão aos opositores ao regime. Mas não foi daquela vez que Sergipe se redimiu de sua opacidade histórica, palavrão que recorro para não usar o incômodo insignificância. Maciel foi desalojado da chapa antes que se ela se efetivasse, ignorado que era pelo próprio Jânio, segundo Nery, que o chamava de “ataúde de chumbo”, ou seja, o atual mala.
Dória, diferente, aparece várias vezes e sempre levado a sério, em reuniões decisivas, com quem decidia, mesmo no campo da oposição. Ele foi deputado ligado à gente como Miguel Arraes, o próprio João Goulart e tantos outros que resistiram à ditadura e exerceram o poder a partir de 1985. Ele mesmo foi preso e cassado em 64, despachado do Palácio Olímpio Campos para Fernando de Noronha. No governo Sarney, da Aliança Democrática feita de PMDB com PFL, Seixas foi presidente da Petromisa e teve influência na política local. Eloquente, mas simples, de vida espartana, nunca deixou de exercer um certo charme entre seus companheiros da esquerda no núcleo do poder nos anos 50 e 60. Conheci Seixinhas, como era chamado por aqui, nos anos em que atuei na sucursal da Tribuna da Bahia e na TV Sergipe, editando e co-apresentando o Bom Dia. Até hoje lamento não ter explorado mais a riqueza da experiência deste sergipano que foi, de fato, um dos poucos que brilharam lá fora.

Anotações sobre o fim do mundo (VII)

O mundo foi tão dominado pelo discurso do produtivismo que até velhos esquerdistas são flagrados volta e meia discutindo prejuízos, queda nas bolsas, falências múltiplas e coisas assim. Como se fosse deles cada centavo supostamente perdido. Digo supostamente, porque a loucura capitalista nos empurrou para a riqueza virtual, a financeirização da vida, que fez tudo se tornar volátil em segundos. A Rússia brigou com os sauditas de noite e a Petrobrás amanhece valendo menos 50 bilhões. Ah, briga resolvida. E a Petrobrás ganha outros tantos no mesmo lapso de tempo. O jornalismo, bastião de resistência ao ordinário – como dizia a amiga Ilma Fontes - entrou nesse jogo, se permitindo roteirizar a chorumela neoliberal, conferindo relevância ao seu diário de iniquidades. Só uma peste que deixa no mesmo nível de insegurança o primeiro ministro inglês, o príncipe Charles e a cachorra de Corí para nos chamar de volta à realidade. Andam dizendo que depois dessa gripe o mundo não será mais o mesmo. Quiçá que sim, afinal, como disse Caetano já há algum tempo: alguma coisa estava fora da ordem. Depois dessa vai ficar mais fácil pensar livre, sacudir velhas ideias caiadas como novas e derrubar certezas que não resistiram a uma gripe. Novamente Caetano: la leche buena toda em mi garganta, la mala leche para los puretas.

Anotações sobre o fim do mundo (VI)


Aproveito também a quarentena para os muito mais de 40 filmes atrasados, que vejo agora um a um, dos diálogos improváveis de Abbas Kiarostami ao cinema soviético, que, depois da debacle da cortina de ferro, começou a despertar meu interesse. E é um grande cinema, com diretores, técnicos e atores sofisticados, que mantêm a tradição iniciada no limiar do século passado, com Eisenstein e tantos outros. Aqui, duas dicas:
Fausto, de F. W. Murnau, baseado na obra do célebre Goethe, que explora o mito do homem que vendeu a alma ao diabo. O filme é de 1926 e é um dos grandes trabalhos de Murnau, um dos mais valorosos representantes do cinema mudo e do chamado cinema expressionista alemão. Além de ser baseado num gigante da literatura universal, o diretor é um pioneiro dos efeitos especiais no cinema e, para alcançar os resultados do filme, desenvolve uma obstinada construção de cada cena, algo praticamente impensável ainda na aurora do cinema no mundo inteiro.
Vassa, história de uma família burguesa da Rússia pré-revolucionária, enfrentando já os prenúncios da nova era política que dominaria o país até... até hoje. O filme baseia-se numa peça de Maksim Gorky, ele mesmo, autor do célebre A Mãe, que fez a cabeça da esquerda mais velha, como este locutor que vos fala. Gorky foi inicialmente um propagandista da revolução e, além de A Mãe, esta peça integra o repertório das obras de arte que o regime russo usou para incrustar seus dogmas. Pouco depois ele se revolta contra o regime de Stalin, mas aí já outra história. Fiquemos com o filme, que vale como registro histórico de um período, para quem quiser conhecer um pouco da história.