Os uivos, gritos e sussurros de uma resistente periferia
* Luciano Correia
Uma notícia está chegando lá do Maranhão
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Veio no vento que soprava lá no litoral
De Fortaleza, de Recife e de Natal
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju
E lá do norte foi descendo pro Brasil central
Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Veio no vento que soprava lá no litoral
De Fortaleza, de Recife e de Natal
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju
E lá do norte foi descendo pro Brasil central
Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul
(Milton Nascimento-Fernando
Brant)
Em 1º. de junho estréia em rede nacional, pela TV Brasil (e outros 68
países que recebem a TV Brasil Internacional), o programa “Estação Periferia”,
produzido pela TV Aperipê de Sergipe, comandado pelo rapper Hot Black.
Periferia é uma expressão que virou moda e, como ocorre nesses casos, logo
apropriada pela cultura mainstream. A
emissora líder tem até uma apresentadora especialista nessas emergências de
culturas que irrompem a todo momento, em todos os lados do mundo. Cá para nós
da Aperipê e do pequeno estado de Sergipe, além do marco significativo de emplacar
nacionalmente e mundo afora um programa feito em casa, demarca ainda uma nova
forma de olhar a vida e a matéria prima de que se serve a tevê.
O mercado brasileiro de televisão nasceu e se multiplicou com um defeito
de fabricação: conceber um país com uma visão distorcida, a partir do eixo
Rio-SP, desconhecendo, como na música de Milton, que o Brasil não é só litoral.
O “litoral” aqui é uma metáfora para essas concepções de Brasis paridas desde o
circuito Ipanema/Leblon-Av. Paulista, desfocada porque autista, ignorando tudo
que não seja o umbigo ou, quando muito, exibindo uma amostra canhestra do que
supõem ser o país fora de seus domínios. Foi preciso que um presidente
desalinhado com o oligopólio exercido pela rede dominante criasse uma
alternativa para os brasileiros enfastiados com seus realities e novelas emburrecedores, usando a presença do poder
público para ofertar outros mundos possíveis na cultura, na arte e nos modos de
fazer televisão.
O establisment, como é de seu
feitio, costuma absorver inclusive as demandas emergentes e domesticá-las, num
processo de pasteurização que expurga nutrientes, que, no caso da produção
cultural, mata o espírito criativo. A riqueza do Estação Periferia é que ele
sorve diretamente na fonte, sem intermediários que busquem interpretar o mundo
para terceiros, além de ser chancelado pela deliciosa aventura de fazer
televisão, sem conceder às coca-colas do mercado. Concebido, roteirizado,
produzido e depois realizado pela TV Aperipê de Sergipe, a equipe viajou por
todo país para captar a alma bruta das ruas, todas as manifestações da vida e
da cultura que “não saem no jornal” nem “passa na TV”, ou, quando comparecem, é
com essa versão artificializada referida anteriormente. Para isso, contou com a
execução de um projeto, que resultou em recursos, limitados mas suficientes
para encararmos os desafios. Desde a primeira captura de imagens até a
conclusão dos primeiros dezenove episódios, foi um longo e penoso caminho, que
aqui não cabe relatar, mas apenas lembrar que o engenho de transformar um
projeto em papel em programas de TV implica em obstáculos, transpiração e
sofrimento.
Evidente que essas empreitadas são comuns já há bastante tempo pelos
grandes canais estabelecidos na praça publicitária que os financia. O inusitado
aqui é a capacidade de uma equipe sergipana, que destrinchou os meandros
burocráticos de Brasília para emplacar o projeto e, por fim, realizar um feito
inédito na história da televisão sergipana. O Brasil pulsante das ruas que
vocês verão na tela da TV Brasil a partir de 1º. de junho não é só o espetáculo
televisivo traduzido nas cores da arte, mas lições de vida, conhecimentos do
povo e da juventude que muitas vezes se reinventam a todo instante para
sobreviver, em muitos casos sob o olhar frio das autoridades e a criminosa
ausência do Estado, o poder público.
Cumpre, assim, uma infinidade de missões sagradas, num país cujo
audiovisual tornou-se refém da mediocridade das audiências e dos ditames do
mercado publicitário. No caso de um programa que desvia o foco daquela que um
político definiu como nossa classe média branca e bem nutrida, mais que dar voz
à massa cinzenta e opaca que não está nas novelas da zona sul carioca, traz um
canto como esse aqui, pouco lembrado, que ilustra a alma dos guetos e nos permite
encerrar novamente com música: “Apesar de tanto não, tanta dor que nos invade/
Somos nós a alegria da cidade. / Apesar de tanto não, tanta marginalidade/
Somos nós, a alegria da cidade” (“Alegria da cidade”, Jorge Portugal/Lazzo).
* Luciano Correia é professor da Universidade Federal de Sergipe, doutor
em Ciências da Comunicação pela Unisinos (RS) e presidente da Fundação Aperipê
de Sergipe.