quarta-feira, 24 de julho de 2013

Um brinde a Dominguinhos

A primeira morte da MPB que curti com reverência e saudade foi Adnorinan Barbosa. Morava ainda na cidade de São Salvador da Bahia, mas a Folha da Praia, naqueles efervescentes verões pós abertura, era minha conexão com meu chão (o Poeta Amaral dizia: seus leitores!). Virou crônica do imberbe estudante de jornalismo na emotiva FDP.
A segunda foi o maior artista da música brasileira (popular? MPB? Isso é invenção acadêmica, pois...), o gênio Luiz Gonzaga, maior de todos os tempos e, pelo que tocam aí, eterno rei. Acho que foi Luiz Eduardo Oliva (pela UFS), - só me ocorre ele agora - que organizou uma festa-sentinela no alto do bairro América, os artistas sergipanos se revezando numa inesquecível homenagem ao rei do baião e de todos os outros ritmos. Despachamos Gonzaga com alegria e festa, apressando ainda seu assento no panteão de nossa fabulosa música.
Depois só me tocou o transbordante Waldick, cuja morte me alcançou no meio de um doutorado agônico, mas que, naquele dia, eu bradei para minhas frágeis convicções com uma rara lucidez: “hoje perdemos um grande pedaço da vida de todos nós”. Larguei textos e certezas acadêmicas e fui ao bar do meu amigo Fabiano, na gélida São Leopoldo, no meu querido e caro Vale do Rio dos Sinos, beber por um dos maiores cantores da música brasileira. Um poeta que também compunha coisas demasiadamente humanas. Me vinguei de nossa imprensa coxinha, que torturou esse latin lover dos palcos do povo e pespegou por cima de seu talento, até o fim da vida, o timbre-preconceito de “brega” (e ele levou essa mágoa para o túmulo), quando li uma crônica de Xico Sá.
Dizia (citando os primeiros versos de “Torturas de amor”): “No cinquentenário da bossa-nova, sinto muito pelos bons modos jazzísticos que tanto agradaram a classe média do sr. João Gilberto, mas ninguém me disse mais coisas do que esse homem que cantava Dostoievski para as putas e para nossas mães ao mesmo tempo”:
“Hoje que a noite está calma/ E que minha alma esperava por ti. / Apareceste afinal, torturando esse ser que te adora.”
Hoje, verto meus copos pela memória de Dominguinhos. Há um disco antológico, registro ao vivo, de uma apresentação de Gonzaga no teatro João Caetano, em 1971, no Rio, com o moleque Domingos arrebentando na sanfona, algo como o que fazem agora os dois filhos sanfoneiros de Erivaldo de Carira. Na passagem de “Numa sala de reboco” para “O cheiro da Carolina”, o gênio se manifesta ali, num solo que só loucos por música sabem se tratar de momento único, porque a indústria fonográfica, na sua ânsia e burrice, não permite esses experimentos se não no acaso de um teatro, fora de seus cânones comerciais (o ouvido das massas, me perdoem os revolucionários da última temporada, é pobre e colonizado. Ou pobre porque colonizado). Essa alegria criativa na música nordestina só é encontrada em raros, como Oswaldinho, outro gigante (luzes nele, faz favor, para não chorarmos saudades só na hora da morte). Oswaldinho é filho de Pedro Sertanejo, um conterrâneo caipira que se impôs no mercado musical do Rio-SP e cujo filho faz diabruras tocando Beethoven no acordeon. Sanfoneiro tocando Beethoven? Só se for da linhagem de Januário, essas almas tocadas pelo dom da arte.
Há uma outra boa história de Dominguinhos, trilha de um amor errante de minha bruta juventude, que, pelo tamanho da epopeia e preguiça do autor, deixo para o próximo adeus. Só cito a música, para quem, como eu, quiser viajar nessas promessas de paixão do nosso forró (isso mesmo: compositores como Humberto Teixeira e Dominguinhos, entre tantos, souberam derramar grandes histórias de amor entre xotes e xaxados). É “Eu me lembro”, um xotinho apaixonado que só quem viveu sabe como toca os mistérios insondáveis do coração.
Uma vez, nos longínquos 80, encontrei Dominguinhos no calçadão da Laranjeiras, ali por onde havia uma loja de discos que apoiou imensamente os artistas nordestinos, a Aki Discos. Numa época em que estrelas como ele deviam ostentar aquela pose artificial obrigatória às celebridades, aquele matuto, grosso na forma e simples no trato, caminhava entre aracajuanos com um despojamento tácito, negociado pelos dois lados, artista e fãs, que, igualmente, o tratavam como alguém que animasse os forrós dos pinga-pus do Beco dos Côcos, um parente próximo a quem cumprimentavam com uma gostosa sem-cerimônica: “Digaaaa, Dominguinhos!”. Eu vi isso e anotei na minha coluna de admiração pelos dois, Gonzaguinha e o povo-povo do Sergipe profundo.

Este senhor que hoje passou para o outro lado (que lado? Pois...) é um dos últimos, sem dúvidas. Mas, como a citação quase forçada de Oswaldinho, talvez para falar de uma continuidade sem a qual não suportamos, como diz Xico Sá, a bundamolice da classe média, saio dessa sentinela-bêbada dizendo aos desavisados: graças a Deus ou ao deus do acaso, gente como Petrúcio Amorim, Maciel Melo e Nando Cordel anda tecendo outras maravilhas do amor e da paixão. Enganam e encantam bestalhões como eu, que, tão incrédulo nessas coisas como nas improváveis conexões com o outro plano, precisam tanto de umas como das outras.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Um texto do jornalista Paulo Nogueira, tão útil e atual nesses tempos de ideias embaralhadas

Usar as prerrogativas da liberdade de imprensa para fins como o de Augusto Nunes incorre justamente no oposto: abusar de um direito da sociedade e, desta forma, enfraquecê-lo. Como diz Paulo Nogueira no texto abaixo, a mídia deve servir à sociedade, e não o contrário. Jornalismo tem que ser crítico e com responsabilidade. Os cursos de comunicação precisam urgentemente rever seus currículos, a formação de seus professores e a própria razão de ser. A maioria deles é feita de gente que jamais pisou numa redação, que não escreve em jornal, internet ou lugar algum. As pesquisas giram em torno do umbigo de seus mestres. Os critérios de seleção de mestrados e doutorados nas universidades públicas precisam ser abertos e transparentes, porque se tornaram políticas de panelinhas, ação entre amigos.
Se os gritos das ruas quiserem a atenção da sociedade, devem incluir demandas como essas.

O ataque de Augusto Nunes a Lula é pedagógico
PAULO NOGUEIRA 10 DE JULHO DE 2013

Ele prova quanto a sociedade está indefesa diante de agressões.

Um texto de Augusto Nunes na Veja ilustra a necessidade torrencial de discutir os limites da mídia no Brasil.

Todo país socialmente avançado tem regras e limites em nome do interesse público.

Para recordar, a Inglaterra, berço da liberdade de imprensa, recentemente promoveu esta mesma discussão depois que um jornal de Rupert Murdoch foi pilhado invadindo a caixa postal do celular de uma garota de 13 anos sequestrada e morta.

Um juiz – o discreto, sereno e brilhante Brian Leveson, que ao contrário dos nossos guarda uma distância intransponível da mídia e dos políticos – comandou os debates, travados sob o seguinte consenso: a mídia existe para servir a sociedade e não o oposto. E não está acima da lei e nem de regras.

O texto de Augusto Nunes me chegou por duas fontes, o que mostra o quanto ele incomodou quem não é fanático de direita.

Numa tentativa bisonha de humor, ele compila títulos de um livro com o qual Lula se candidataria à ABL. Os nomes são sugestões de leitores, e ali você pode ver o nível mental de quem lê Nunes.

Lula é chamado de bêbado, ladrão, molusco, burro, afanador, cachaceiro, larápio e cachaceiro, entre outras coisas.

É um texto que jamais seria publicado na Inglaterra por duas razões. A primeira é cultural: há décadas já não se aceita entre os ingleses este tipo de jornalismo insultuoso e boçal. A segunda é jurídica: a Justiça condenaria rapidamente o autor e imporia uma multa exemplar não só a ele, autor, mas ao veículo que publicou a infâmia.

Não se trata, como cinicamente se poderia argumentar, de censura. Mas de proteção à sociedade contra excessos da mídia.

Em outra circunstância, se alguém quisesse escrever o que quisesse do próprio Augusto Nunes, ele também estaria protegido. Esta a beleza da proteção.

Liberdade de expressão não significa licença para publicar tudo. Um juiz americano mostrou isso de uma forma didática ao falar na hipótese de alguém que chegasse a um auditório lotado e gritasse “fogo”.

Pessoas poderiam morrer no caos resultante do pânico. A liberdade de expressão não poderia ser invocada por quem falasse em fogo.

Murdoch foi obrigado a se submeter a duas sabatinas em que o juiz Leveson questionou o tipo de jornalismo feito em seus jornais
A desproteção à sociedade no Brasil é tamanha que, num caso clássico, diretores da Petrobras tiveram que processar Paulo Francis pela justiça americana depois de repetidas vezes serem chamados de corruptos.

Para sorte dos diretores da Petrobras, as acusações de Francis foram feitas em solo americano, no Manhatan Connection. A ação seguiu seu curso – sem que ninguém conseguisse interferir, o que fatalmente teria ocorrido sob a justiça brasileira. (Serra e FHC se mobilizaram a favor de Francis.)

Tudo que a justiça americana pediu a Francis foram provas. Ele não tinha. Diante da possibilidade de uma multa que o quebraria, ele se aterrorizou e morreu do coração.

No Brasil, Ayres Britto – autor de um absurdo prefácio num livro de Merval – acabou com a Lei da Imprensa quando era do STF, e deixou a sociedade sem sequer direito de resposta e exposta a arbitrariedades e a agressões de quem tem muito poder e pouco escrúpulo em usá-lo.

Para as empresas de mídia, foi mais uma vantagem entre tantas outras. Para a sociedade, foi um recuo pavoroso: ela foi posta em situação subalterna perante a imprensa.

O bom jornalista Flávio Gomes, no Twitter, afirmou que Lula deveria processar Nunes.

Isso se ele pudesse processar nos Estados Unidos, e não no Brasil. Aqui seria simplesmente inútil: o processo seria usado freneticamente como prova de intolerância de Lula à “imprensa livre”, aspas e gargalhada.

E não daria em nada.

Melhor respirar fundo e seguir em frente, para Lula ou para quem enfrente tanta infâmia.

Mas isso não elimina o fato de que o texto é uma prova do primitivismo da mídia brasileira e da legislação que deveria colocar limites claros e intransponíveis.

Não fazer nada em relação a isso – debater limites como a Inglaterra — é um caso de lesa pátria.

O jornalista Paulo Nogueira, baseado em Londres, é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.