sábado, 8 de maio de 2021

Wendy Guerra e a nova literatura cubana


 Leio Posar Nua em Havana, da cubana Wendy Guerra. Wendy é uma moça bonita de 50 anos e este o terceiro livro dela que leio. Os outros são Todos se Vão e Nunca Fui Primeira Dama, ambientados na turbulenta sociedade cubana pós-derrocada do comunismo. Ela própria, nascida em 1970, já não é daquela geração que acreditava cegamente nas maravilhas do regime. Tampouco é o que os empedernidos militantes da esquerda jurássica chamam de contra-revolucionária ou adjetivos ainda piores. O que ela faz mesmo é literatura e, ao relatar a vida no mundo em que vive, carrega dores e delícias vividas e observadas por qualquer jovem autor em qualquer canto do mundo.

Posar Nua em Havana é baseado no diário da escritora Anais Nin, uma franco-cubana-americana nascida em 1903 e falecida em 1977. Filha de pais cubanos, a mãe uma cantora lírica amadora, filha de diplomatas; e o pai um pianista famoso, sedutor e alpinista social, sempre de olho no dinheiro da família de suas mulheres. É curioso a ignorância quase total em relação à figura de Anais, uma mulher antecipada no seu tempo, uma artista irrequieta, de forte personalidade, que viveu não sem deixar marcas profundas em torno dos que a rodeavam. Não que a feminista número 1 do mundo artístico, Frida Kahlo, não seja tão importante, intensa e autêntica, mas não deixa de ser intrigante que uma tenha alcançado tanto reconhecimento, a ponto de virar moda e arroz de festa entre jovens mulheres descoladas, e a outra simplesmente é desconhecida da maioria.

Não faço comparações, por saber da relevância das duas. Conheci a história de Frida muito antes dela explodir como novo mito feminista do final do século XX. E foi por acaso, numa dupla sessão de cinema em Havana, em 1989, quando entrei na sala, na verdade, para ver o outro filme. Tal foi meu encantamento com aquela inconstante e formidável mulher, que quase esqueci a outra película. Era uma produção mexicana, um docudrama que contava a vida e os amores da artista - Diego Rivera o principal, mas também com passagem pelo amante nada comum, ninguém menos do que o célebre León Trostsky. Depois que ela já era uma celebrity mundial é que veio a produção wollywoodiana, com Salma Hayek, uma das raras vezes em que o cinemão americano botou a mão num tema meio maldito, já explorado antes no seu país de origem, e não estragou o produto.

Para quem admira Frida, conhecer a vida e a obra de Anais Nin é quase obrigação. Ao fazê-lo, as novas gerações de feministas logo vão colorir feiras descoladas no país inteiro com camisetas, tatuagens e coisas que tais em louvor a essa mulher fascinante.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Adultos na sala, a nova lição que nos vem do grego Costa-Gavras

 

O novo filme do grego  Costa-Gavras é uma aula de política. O tema da película, a luta do então ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, contra o establishment das finanças mundiais no processo de renegociação da dívida externa, é também uma aula de esperança.

Quebrada por seguidos governos corruptos e gastadores, a Grécia mergulhou numa crise sem precedentes em 2008. Em 2015, todas as esperanças da população dali foram confiadas à eleição de um jovem engenheiro de 41 anos, Alexis Tsipras, carismático líder do partido de esquerda radical Syriza. 

Eleito primeiro-ministro, coloca na pasta das finanças Yanis Varoufakis, jovem brilhante, militante de organizações sem fins lucrativos para a geração de renda para os pobres, um intelectual refinado e professor de importantes universidades de países como Inglaterra, Estados Unidos, Austrália e a própria Grécia.

O filme baseia-se no relato que Varoufakis faz no seu livro "Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment", o passo a passo do duríssimo enfrentamento das feras dos governos e bancos europeus, um jogo bruto e violentamente desequilibrado em favor dos donos do capital.

Habilidoso, preparado como pouquíssimos na política, na economia e na interlocução com os líderes mundiais, Varoufakis lembra o destemor, a obstinação e a utopia de um Che Guevara jovem, antes de virar o que virou no exercício do poder. Só que muito mais preparado, raciocínio ligeiro e mordaz, quando necessário, mas temperado pela paciência e pela tolerância incomuns no ambiente em que ele jogava as cartas da renegociação da dívida grega.

O filme é a reprodução desse sofrido processo em tons fortes, ora dramático, ora com leves toques de humor. Costa-Gavras, um gênio do cinema, muitíssimo mais importante do que uma dezena de "monstros" consagrados pela mídia, com filmes como Z, de 1969, sobre o assassinato de um político liberal em plena ditadura militar grega; Estado de Sítio, 1973, que trata da repressão no Cone Sul, e Missing - Desaparecido, de 1982, sobre os assassinatos políticos na ditadura do general Pinochet no Chile. 

Estes são os mais emblemáticos trabalhos de Gavras, um grego que era adorado por dez entre dez companheiros de minha geração. 

Costa-Gavras tem uma filmografia extensa, com muitos outros títulos, mas estes foram os que constituíram seu portfólio político, sendo cultuado nos ambientes da esquerda no mundo todo. Um pouco sumido da mídia - desgraçada mídia: de que gostam seus tubarões, afinal? -, ganhou novamente a atenção da crítica com o impagável O Capital, de 2012, seu penúltimo filme, antes de nos brindar com essa maravilha de Adults in The Room - escrevo o título em Inglês porque ainda não foi lançado no Brasil e sabe-se lá que título a indústria nacional, com suas esquisitices, vai arranjar. 

O Capital é também um filme extremamente político, dessa vez flertando com o humor e a ortodoxia dos mercados financeiros mundiais, a devoção sagrada ao São Capital. 

Em Adults in The Room, ele dramatiza a batalha quase solitária de Varoufakis, sabotado pela direita grega, a mídia - olhe ela aí de novo, cumprindo seu “papel histórico”! -  e pares do próprio governo.

Charmoso, inteligente e culto, a impressão é que essas qualidades despertam uma inveja secreta no primeiro-ministro Alexis Tsipras, tais são a passividade e a distância com que acompanha o sangramento público do seu ministro das finanças. Ou não. 

Talvez seja mesmo essa a diferença de um político populista de esquerda - Tsipras - e um jovem de esquerda íntegro e transparente - Varoufakis.

O fim da história é conhecido: abandonado pelo populismo calculista do seu líder, não resta a ele senão renunciar. Tsipras, por seu turno, renuncia pouco depois e convoca novas eleições, vencendo e ganhando condições para governar por quatro anos. 

Mas em 2019, em novas eleições, adivinhem quem vem para jantar Tsipras, o Syriza e o sonho socialista dos que apostaram numa saída antiliberal, antiausteridade contra a ditadura do FMI e Banco Central Europeu? A velha e onipresente direita, que se aproveita do desgaste provocado pela dose do remédio aplicado na economia para buscar apoio dos mais afetados pelas medidas de arrocho, ele mesmo, o mítico povo, sempre disposto a votar contra si próprio. Sonho socialista grego naufragado, resta-nos o luxo das ideias e a energia de Varoufakis, bálsamo de esperança para essa juventude que vaga nas ruas e universidades, iludidas por tolices como o PSOL e suas antas batizadas.

E o mais importante de tudo isso: a delícia de ver um Costa-Gavras, aos 88 anos, intelectualmente ativo, vibrante, nos entregando obras de arte como Adultos na Sala.


sábado, 25 de julho de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (XX)



     Na Piauí de abril último o professor de Filosofia Marcos Nobre, no ensaio O Caos como Método, mostra que a aparente ausência de racionalidade no modo de Bolsonaro governar não é ponto fora da curva, se não uma opção pela disrupção como forma de atuar e manter-se na política. O texto é um manual para entender o momento político atual e o contexto mundial que tornou isto possível. Um dado interessante: num governo antiinstitucional e antissistema, formado de visões e interesses tão conflitantes, ele acomoda em si, no seu interior, os papéis desempenhados pela oposição, ainda mais quando padecemos da falta de uma oposição estruturada.

     Nas conclusões, diz o filósofo Nobre: “Ainda que fosse por puro instinto de sobrevivência, partidos comprometidos com a democracia deveriam simplesmente abrir mão de disputar militância neste momento, formar convergências em cada um dos campos políticos (à direita e à esquerda) e apontar para uma frente ampla democrática que congregasse os dois lados. Partidos deixaram de ter importância. Muitos partidos se tornaram radioativos, inclusive. É o caso do PT. Mas também do PSDB e do MDB. São inapelavelmente identificadas com o próprio sistema político na forma como funcionou nos últimos vinte anos”.

     Ao ler, lembrei de Lula, que, justamente se pronunciando sobre esse tema, rejeitou veementemente qualquer ideia, na suposição purista (logo quem!!) de que os demais de uma frente ampla – menos o PT – não merecem alianças. Mas lembrei também de Golbery, o diabólico gênio que urdia a geopolítica da ditadura. Melhor: lembrei dos que citavam Golbery como o estrategista encoberto da criação de um partido de oposição para dividir a oposição e a esquerda brasileiras do final dos 80, quando os novos partidos se desenhavam no horizonte.

     É difícil provar tal hipótese, mas é emblemático como o PT inicial gastava tanta munição contra o pobre Partidão, o velho PCB cansado de lutas que já nem latia alto. E, por apresentar essa debilidade, era covardemente atacado como “reformista”, palavrão que hoje virou oração na política do mundo inteiro. A política desagregadora do PT, fruto da doença infantil do hegemonismo, era ação em causa própria, até a chegada ao poder, quando, em nome da tal governabilidade, rendeu-se ao ordinário, no pior sentido. Uma boa prova disso está em outra edição de Piauí, na matéria que trata da terna relação entre o guru petista e o doutor Emílio, aquele que dá nome àquela empreiteira safadinha famosa nos quatro cantos. Mas essa já é outra história.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

A noite de ontem

Sobre o primeiro dia do projeto Forró Caju em Casa, desenvolvido pela Funcaju

Foi um São João atípico, mas, não se enganem, todos serão a partir de agora.

1) Os megaespetáculos, do tipo Forró Caju, já viviam uma discussão, fruto de uma crise existencial provocada pelo gigantismo que tomou corpo nessas festas e por um certo envelhecimento. A pangonia tão somente precipitou o que muitos de nós já vêm pensando. Essa é a primeira constatação que faço desse São João no meio de uma pandemia. No pós-crise emergirá um novo modelo de festas públicas.

2) Fiquei maravilhado com a qualidade musical presente na programação do primeiro dia do Forró Caju em Casa. Uma gente jovem fazendo emergir novos movimentos, com sotaque do povo real: as meninas do Marcos Freire II, a garota do Lamarão, o fechamento do Pipo’s. Há sons novos no ar. A nova cena musical aracajuana está dentro do edital do Forró Caju em Casa.



3) A transmissão da programação se deu por três canais de TV, uma emissora de rádio, as redes da PMA e Funcaju e o canal da PMA no You Tube. Este último se impõe cada vez mais como o que os intelectuais do bar chamam de “lugar de fala”, o protagonismo que a radiodifusão exerceu por seis ou sete décadas. É outro meio, portanto, são outras linguagens, outros protocolos de leitura, se impondo sobre um mundo que, para o bem ou para o mal, vem obsolescendo.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (XIII)

A pandemia e a iniquidade humana pelo olhar da imprensa
A Alemanha começou seu lockdown em meados de março, justamente quando a gente iniciava nossa quarentena tabajara, padrão nacional, ou seja, meia boca. Hoje, começa a liberar tráfego, gente na rua e até o campeonato de futebol, que pode iniciar daqui a uma semana.
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Pelo jornal da rádio Band News ouço a notícia de que em Belém do Pará, após o lockdown , o prefeito local considerou como “essencial” o trabalho das empregadas domésticas. Não se trata de nenhum reconhecimento ao suado, sofrido e digno trabalho das domésticas, mas, ao contrário, de uma medida do “pouco se lixando” contra trabalhadoras que, diferente da maioria das pessoas, recolhidas em casa para preservação da própria vida, vão furar os bloqueios de Belém para levar a uma gente egoísta e mesquinha os serviços que podem, muito bem, ser exercidos pelos donos e donas de casa. Neste momento e nestas condições, o trabalho das domésticas não é essencial, se comparado ao indispensável trabalho de médicos, enfermeiros e técnicos da área de saúde. O Brasil não se envergonha de ser o Brasil de sempre. Pelo andar dos 520 anos, nunca teremos vergonha de nada.
Se comparados com a Alemanha, é outro 7 a 1 que a gente toma deles.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (XII)


O chamado brasileiro médio é uma abstração construída pelos sociólogos e que representa não esse tipo bonachão, simpático, o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda ou o de Belchior, aquele que diz sempre “com licença, por favor”. Nosso brasileiro em questão é o mais corriqueiro, aquele que existe desde Cabral e que o jogador Gérson celebrizou no famigerado comercial do cigarro Vila Rica (“o importante é levar vantagem”), estabelecendo desde então a lastimável Lei de Gérson, a única que a classe média brasileira cumpre com devoção canina. Os mais ricos e mais pobres também têm o mesmo apreço para a tal lei, que significa a adoção do salve-se quem puder em todos os campos da vida.
Assim somos desde sempre, para ilustrar nossa ignorância, ausência de protocolos, desrespeito ao próximo e egoísmo criminoso. Na literatura, talvez Nelson Rodrigues tenha sido quem melhor descreveu nossas iniquidades. Agora pulemos para a vida real da pandemia.
No Mosqueiro há um supermercado antes chamado de Pão de Açúcar, embora de nome pretensioso, um simpático mercadinho frequentado pela gente simples do lugar e os passantes melhor providos. Após a chegada do “verdadeiro” Pão de Açúcar em Sergipe, o proprietário, rapaz simples, conterrâneo meu de Macambira, logo tratou de rebatizar seu negócio para Paseo, que não sei o que significa, mas ele, certamente, sabe o que significa peitar os tubarões da gigante fundada por Abílio Diniz.
Nesses dias de pangonia nossas compras são nervosas, com olhos tensos para quem passa por nós raspando a tinta e espalhando vírus no ar. Infelizmente, lá no Paseo, como em qualquer lugar, pais e mães irresponsáveis ainda insistem em levar filhos pequenos para esses passeios, com o perdão do trocadilho. Sabe-se lá o que explica pais levarem crianças numa ida ao supermercado, mas o fato é que muitos não acham isso, ou não se incomodam com a vida de seus pequenos e do resto das pessoas. Daí, ignoram os riscos que ambos representam num contato que poderia ser evitado.
Sábado passado, em meio ao mencionado nervosismo das compras, somos obrigados a desviar de um par de moleques malcriados, um deles já grande, jeitão de abobado, fazendo dos corredores do modesto Paseo o playground para brincadeira de criança pequena. No caixa, o responsável pelo retardo dos meninos, pai branco, cara de bem nascido, máscara na sua cara de mascarado e olhar furioso da classe média quando alguém ousa contrariar suas vontades. Ninguém ousou reclamar, mas muitos dirigiam o olhar de reprovação para o marombado pai, tão cioso de si, tão negligente com os outros.
Na porta do super, desconhecendo regras, desprezando o amplo e vazio estacionamento da empresa, um portentoso Audi preto aguardava completamente irregular, interrompendo o fluxo, prejudicando a mobilidade. Nada mais que um caso comum de trânsito, como cantava o mesmo Belchior, nossa classe média mal educada e arrogante, rasgando regras e cuspindo perdigotos em nossa cara. Pelo visto, seguirá sendo assim em mais outros 500 anos. Toca a vinheta: Brasil, zil, zil!

Anotações sobre o fim do mundo (XI)

Minha (triste) vida de cachorro com a Deso
Há 25 anos vim morar no Mosqueiro, na ponta final da Sarney, onde Judas perdeu as botas. Ninguém queria nem andar por aqui, imagine viver. Mas vi uma entrevista de Jane Fonda dizendo que dormia com um travesseiro com um simulador das ondas do mar e aí tomei a decisão que há tempos pretendia: vim morar no mar. Não é um mar de Pessoa ou dos bem nascidos (e melhor vividos) do Morada da Praia, I e II. O condomínio onde me escondo foi assim descrito pelo jornalista Zenóbio Melo numa visita que me fez, para alguma rodada de grogue certamente, há uns 15 anos: “porra, eu pensei que você morava num condomínio da Sarney. Isso aqui é o Marcos Freire IV”.
Além de fazer parte da série D, no dizer do linguarudo Zenóbio, não recebíamos sequer os vapores da então preciosa água da Deso. Todos tínhamos que recorrer a poços artesianos que nos ofereciam diariamente água, barro e ferro, este último diluído nas duas substâncias. Como tal estatal é mal afamada desde os tempos do nosso fundador Cristóvão de Barros, instalei uma geringonça tecnológica que separava a água que jogava no jardim e outra que era filtrada por carvões e mecanismos da engenharia, para ter o moderno direito a uma água capaz de lavar um copo. Investimento de uns dois pilas.
Anos depois a sempre mal afamada Deso descobriu que já era lucrativo expandir seus negócios pras bandas da Sarney, numa visão social parecida com o atual ministro da Economia, o Posto Ipiranga, que nesse momento frita no caco de Satanás. Instalada no Condado do Mosqueiro, assim nomeado pelo teatrólogo Jorge Lins, aspirante a Conde, sempre tivemos um casamento como todos, ou seja: mais desamor do que harmonia. Até que um dia... até que muitas vezes ficamos a mercê de seus descasos, literalmente desabastecidos.
Nesta semana que este domingo enterra, a famigerada Deso achou pouco sua trajetória de malfeitora e nos aplicou dois violentos golpes de uma só vez: além de provocar o célebre “a água não está subindo”, ainda nos entregou boletos com reajustes de, no meu caso, 100%. Sem uma notícia, uma advertência que fosse, para evitar infartos e crises de fúria, a caixa-preta estatal piorou os serviços e aumentou o preço da má prestação. Para uma empresa com visão social Posto Ipiranga, era o único jeito dela participar da agonia da pandemia. Senão, não seria a Deso.

Anotações sobre o fim do mundo (X)

Em 1928, pouco antes da Revolução de 30, os conspiradores se articulavam dentro e fora do país. Oscar Pedroso Horta, jornalista do Diário da Noite, depois Estado de S. Paulo, faz uma perigosa viagem de monomotor de Santos a Porto Alegre e depois a Montevidéu, para levar uma encomenda de alguns mapas estratégicos para o movimento. Foi à pedido de Siqueira Campos, ele mesmo, o do movimento tenentista, herói do Forte de Copacabana e membro da Coluna Prestes, esse que dá nome a um importante bairro de Aracaju. Deveria entregar os tais mapas a Prestes, exilado no Uruguai. E agora é ele, Pedroso Horta, quem conta, a Sebastião Nery, no seu “Ninguém me contou, Eu vi”:
De repente, mal eu chegava, aparece no hotel um homenzinho muito magro e muito feio, calçado em botinas de elástico:
- Sou o comandante Luís Carlos Prestes.
Percebi logo que era um agente da polícia brasileira.
- O senhor não é Oscar Pedroso Horta?
- Sou.
- Não trouxe uma encomenda de São Paulo para mim?
- Não o conheço. Estou aqui a negócios, não trouxe nada.
O homenzinho muito magro e muito feio foi embora. Tratei logo de trocar de hotel. Peguei um táxi e fui ao endereço de Luís Carlos Prestes. Lá, para espanto meu, encontrei exatamente o homenzinho muito magro e muito feio. Era ele mesmo.

Anotações sobre o fim do mundo (IX)

Ainda do livro Ninguém Me Contou, Eu Vi, de Sebastião Nery, em entrevista com Hélio Fernandes, da lendária Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, o irmão de Millor conta que Golbery, o diabólico general que encantava até gente de esquerda (Glauber Rocha o chamou de gênio de raça, certa vez), era muito amigo de Carlos Lacerda. Mas brigaram no episódio do movimento para não dar posse ao presidente João Goulart. Jango, como se sabe, era o vice de Jânio, o tresloucado que renunciou pensando que o povo ia chamá-lo de volta. Como isto não se deu, e Goulart era temido pelos militares + UDN e a totalidade da burguesia nacional, começou uma conspiração para não permitir a posse de Jango, que, no dia da renúncia do presidente, estava em viagem à China. Como divergissem nas estratégias desse outro golpe, de amigos fraternos viraram inimigos figadais. Diz Hélio Fernandes, sobre o tal gênio da raça:
“Golbery só tinha uma meta e um objetivo no governo, que era liquidar a candidatura Lacerda. Golbery passa 24 horas por dia sem fazer nada, a não ser pensando em maldade contra alguém, para destruir alguém. Ele não tem nenhuma ideia construtiva. Nunca teve uma. O livro dele sobre geopolítica é terrivelmente cansativo, não tem nada de geopolítica, não tem nada de literatura. Tem apenas o número de páginas. Se fosse impresso em branco era a mesma coisa. Ele é um gênio da maldade.”

Banese, um banco kafkiano

O escritor tcheco Franz Kafka, autor, dentre tantas obras célebres de “A Metamorfose”, ficou conhecido pela complexidade de situações que atravessam seus enredos, explorando mecanismos psicológicos considerados absurdos. Dessa visão da vida em sua obra resultou o adjetivo “kafkiano” para designar absurdos, irracionalidades etc. Em terras sergipanas, um modesto banco estadual exibe doses fartas do escritor tcheco na sua agência do Calçadão da rua João Pessoa, pomposamente chamada de Magazine. Desde outubro passado este modesto locutor que vos fala aceitou a espinhosa missão de responder pela administração do condomínio onde me escondo há 25 anos. Desde outubro faço pagamentos mensais, por cheque, esse objeto em extinção no resto do mundo. Mas, se o Banese quer cheque, tome-lhe cheque. Desde então, a tal agência Magazine desenvolve um divertido jogo contra essa alma indefesa. Divertido pra eles, os sádicos funcionários que operam aquela casa dos absurdos. Por algumas vezes tive que assinar novamente cheques encaminhados para pagamentos, por “divergência de assinatura”. Depois de assinar papéis por mais de quatro décadas, caixas da refrigerada Magazine decidem quando minhas firmas são verdadeiras ou falsas. Sabe-se lá quem, talvez Deus, concedeu poderes tão fortes aos desconfiados servidores. Como parte do jogo de diversão dos sádicos caixas, agora, depois de sete meses, resolveram que todo cheque deve trazer duas assinaturas, a desse infeliz síndico – profundamente infeliz! – e de novo personagem, o sub-síndico, que deve ser tirado do sossego de sua quarentena para rabiscar exigências de última hora, invenções inúteis da burocracia baneseana, novas regras do jogo inventado por eles. O resultado dessa história, para não cansá-los mais, é o acúmulo de dívidas, como se meu honesto e pontual condomínio fosse um reles mau pagador, um caloteiro da praça, irresponsável como as medidas de bancários déspotas que vivem de mandar à merda dos direitos do consumidor. O detalhes finais: desde antes da quarentena, dezenas e dezenas de vezes eu tentei falar por telefone com a metida agência, que, de tão convencida, jamais atendeu minhas desesperadas ligações. Agora, com o funcionamento meia-boca, é que não atendem mesmo. Procuro por gerentes, sub-gerentes, sub-subs, um simples contínuo que seja, mas meus gritos não são ouvidos. Sem comunicação por telefone, esse meio inventado ainda no século 19, imagine e-mails, zaps ou instas, essas modernidades que fazem os sub-subs baneseanos arderem de ojeriza. Ir pessoalmente, nem pensar: a repartição fechou. Resumindo, não há peste no mundo que consiga falar com os inacessíveis buRRocratas da agência Kafka, ops, Magazine. Vou cortar os pulsos. Ou mudar de banco.