sábado, 27 de novembro de 2010

Um roteiro de despedidas

Seis meses de blog

Está dito atrás que este blog começou há vários anos, mas depois acabou abandonado pelo seu chefe fundador. Voltei a blogar pelas razões explicitadas, mas não custa repisá-las: o enfraquecimento do jornalismo como serviço público, em favor das lógicas do entretenimento e do negócio; o declino da imprensa tradicional, que, por esta razão, diminui espaços, corta custos (empregados e salários nas primeiras levas); a necessidade de intervenção nesta nova esfera pública midiatizada, no sentido de que, se não deixará de ser privada pela ação de blogs independentes, contará, ao menos, com a presença indispensável do contraditório. Aqui estamos para isto.

Retomei o blog há seis meses, com o objetivo acima descrito, e também como fio de ligação com meu público e meu chão, não obstante estarmos num ambiente cada vez mais desterritorializado, o universo on line das redes infocomunicacionais. Meuexílioacadêmico em Madrid, para um doutorado sanduíche na Universidad Carlos III, pedia compensações emocionais e de identidade. Ainda mais na difícil travessia que vivi neste período, culminada, por fim, com a perda do meu querido pai. A temporada de estudos longe dos últimos momentos de meu velhinho, o resgate dos compromissos desde os anos 80 estabelecidos com meus leitores da FOLHA DA PRAIA, a retomada de uma militância política que transfere o combate do partido para o jornalismo.

Do jornalismo que pratico há décadas (eu e um caminhão de gente no mundo inteiro), o chamado new journalism fiz um diário de minhas experiências, ora mais particulares, ora universais mesmo. Aqui começo um roteiro de despedidas pela Espanha e fecho este capítulo para abrir outros, com a pretensão de inserir estas experiências no espaço comum em que tudo se discute, do particular ao universal, do público ao privado.    


O Marrocos

Antes de deixar Madrid, fui ao Marrocos, dessa vez com três amigos brasileiros que vivem em Barcelona. O continente africano sempre me fascinou e, em duas ou três vezes antes, tentei ir ao Marrocos, desde o Porto ou Granada. Para terem uma idéia do preconceito europeu: em 98 o funcionário de uma agência de viagem do Porto me desaconselhou a fazer um circuito sozinho por este país, pelos perigos que representava. Curioso: no momento em que escrevo esse texto, a bordo da segunda pior companhia aérea do mundo, a Tap, com seu atendimento de quinto mundo, folheio jornais portugueses que dão conta de uma violência que não vi no Marrocos nem nos países europeus onde estive ultimamente. Portugal tem uma bela comida, bons vinhos... e o fado. Até as mulheres, que em todo canto são amáveis e apaixonantes, aqui se assemelham, pela grossura, a homens. Fado sim, fodas não.

Cheguei a Marrakech com uma hora de atraso, graças à pior companhia aérea do mundo, esta, sim, a campeã, Ryanair. É um pau-de-arara voador, com uns vinte meninos de colo chorando desde a sala do embarque em Barajas até o controle de passaporte nesta cidade linda e avermelhada. Fico com certa pena das aeromoças, obrigadas a circular pelo corredor vendendo bujingangas e perfumes, como fazem os bancos brasileiros, inclusive os estatais, que obrigam seus funcionários a atingirem metas ou cotas.
O Marrocos é lindo, envolvente, experiência radical, mas às vezes abusa de nossa paciência. Reza a tradição que toda compra deve ser negociada. sabia disso, mas sem idéia de como isso é estendido a tudo e como nos cansa. Minha estréia foi no táxi que me levou ao pequeno hostal situado nos limites da Medina, na parte de dentro, onde se encontravam os colegas de Barcelona. sabia que o preço da corrida antecipadamente, mas fui obrigado a entrar numa absurda negociação para regatear o que, para mim, parece apenas o preço justo. Por fim, batemos o martelo: dez euros, por uma corrida de menos de cinco quilômetros, o que é caro, mesmo para os padrões europeus.

No hostal, sou recebido pelo sorridente Ali, que, além de não falar espanhol, arranha um inglês na velocidade 5, de modo que compreendo uma outra palavra. Ele oferece a bebida que, a partir de então, vai ser minha companhia de copo nesse país muçulmano: o chá de menta. É impressionante, porque, embora se consiga álcool em hotéis e restaurantes, no restante do país é impossível molhar o bico. Embora saiba da resposta, sempre pergunto por uma cerveja, um rabo de galo que seja, mas eles riem e dizem queálcool não”.
segundo dia foi consumido nas vielas e no mercado de Marrakech, instalando uma tourada sempre que pretendia comprar um regalo para minha finada comunidade de namoradas, hoje reduzida à tietagem de irmãs e sobrinhas. Para não negar a fama de bicho-grilo, posta por amigos como Jorge Carvalho, no dia seguinte encarei um programa radical: eu e mais doze subimos as montanhas que circundam Marrakech, território berbere, e andamos o dia todo numa van até Zagora, uma cidade bonita e organizada nas franjas do Saara.
Mais uma meia hora de carro e paramos num povoado, para compras necessárias no ambiente off-civilização: papel higiênico e muita água. A van avançou mais alguns quilômetros e, finalmente, trocamos seu desconforto pelo desconforto elevado ao cubo oferecido por um camelo. Pode ser bonito no cinema, mas é um troço estranho, com umas puxadas, ralando a bunda, coxas e pernas e provocando assaduras pelos dias seguintes. Minha curiosidade logo foi lançada à bela representação feminina do grupo (o bela fica por conta, principalmente, de uma loira argentina hollywoodiana e uma madrileña mui guapa). Qual a sensação feminina de andar de camelo? a maranhense Júlia se arriscou numa resposta: “dá uma coceirinha boa”. Hummm.

O deserto radical

Uma hora e meia e algumas piadas depois, chegamos num acampamento berbere, tribos nômades que habitam o Saara desde que Maomé vestia fraldas. Somos recebidos com uma rodada de.... chá de menta. Pergunto a Hassan, um dos simpaticíssimos rapazes condutores dos camelos e da infra toda, se nãoum goró por perto, para eu matar saudades da mardita. Ele aponta para o chá e tira uma chinfra: “uísque berbere”. Isso tudo na tenda principal, com todo o grupo sentado em tapetes e ao redor de duas mesinhas rebaixadas, onde depois foi servido o jantar, numa panelona para todos, frango cozido com legumes, pão e... mais chá. Um dos meus amigos fez cara feia e disse que não comia em prato coletivo, com todo mundo enfiando seu garfo. De minha parte, como é sabido, nada acho chato. Comi feito um sultão do deserto.  

Lorota vai, lorota vem, e aquela argentina dos olhos de feitiço ao meu lado, exalando o ferormônio cada vez que se mexia, a vinte centímetros de meus desejos animais. Terminamos todos na beira de uma fogueira, que avançou madrugada adentro com os cânticos berberes e – era mais que hora! – um uísque espanhol, meio safado, que o impagável Pepe, espanhol de Mallorca, sacou sabe-se de onde. Nunca um uísque vagabundo foi tão curtido e cultuado. A gripe que ora me faz companhia foi apanhada , na frieza da noite saariana, tomando o tal xarope e cantando a melhor música brasileira: Toquinho, Luiz Gonzaga e... Bartô Galeno, sucesso, como diria Rossi, em todos os motéis e cabarés das nossas cidades nordestinas. “Eu vou pedir à lua/ Pra iluminar a rua...” Vixe. É poesia pura sob a lua cheia e as constelações do deserto.
A segunda argentina, essa outra feiosinha, deu uns balanços e depois pediu: “Não sabe uma de Cássia Eller?”. Não. Rúmmm!

Honestidade árabe

Com toda a fama de ligeiros nos negócios, achei que tinha contratado um pacote turístico numa agência falcatrua. Pela cara dos sujeitos, cheirava às organizações Tabajara. Mas tudo foi cumprido com simplicidade, mas sem falhas.

A agricultura sustentável

No Brasil, a palavrasustentávelcheira a Ong picareta, mas no deserto vi a sabedoria das tribos do Saara aplicada nos modos de cultivar a terra, de usar os recursos, irrigar, guardar água, enfim, viver com uma dignidade surpreendente.

O melhor suco do mundo

Até então, tinha no nosso maravilhoso suco de cajá a melhor bebida do mundo, tirante as alcoólicas, evidentemente. Em Marrakech, sobretudo na praça central, fazem um suco de cítricos, mistura de laranja, umas tangerinas e toronjas que resultam num suco incrivelmente saboroso. É a melhor bebida da minha vida. Se o Marrocos não fosse a riqueza que é, valeria uma viagem pra beber essa delícia. 

domingo, 14 de novembro de 2010

Meu caminho para Compostela

Desde muitos anos alimento a vontade de fazer o Caminho de Santiago de Compostela, a partir do Porto, passando por Braga, a ou de bicicleta. Cheguei, inclusive, a acertar detalhes com uma amiga francesa, Emile, que conheci... onde?, onde? Na Croa do Goré, no meu velho Mosqueiro. Mas ainda não será desta vez. Meus seis meses aqui, que me pareciam extensos, passam numa velocidade que mal permite administrar o ordinário. Assim, os compromissos do doutorado me avisam que um dia, quem sabe, eu caminhe por estes vales em busca do que agora, por trem e movido por outra razão, acabo de realizar. Aqui vim, pois, para um congresso sobre digitalização.


Mas aviso logo que minha na experiência mística do caminho ficou abalada, tanto por ter feito a rota num confortável trem da Renfe e pela razão absolutamente profana. Mas também pelos relatos que recolhi. Meu evento acontece na praça de Obradoiro, onde fica a inacreditável catedral erguida para cultuar o apóstolo Santiago pelo Rei Afonso II. Ficamos dois dias numa sala aquecida, no Conselho de Cultura da Galícia, com vista para a catedral. Os eflúvios de Santiago, certamente, ajudaram a chegarmos a boas conclusões.

Cidade dos peregrinos


Aqui o espetáculo de beleza arquitetônica segue em progressão geométrica. Se eu ficara encantado com a imponência de Salamanca, fico ainda mais impressionado com Santiago e com essa catedral que é um monumento à beleza e ao poder da Igreja, que aqui fez, na verdade, mais que um palácio, para mostrar toda sua força e potencializar o desejo humano de conexão com o imponderável. A morte, misteriosa e justa morte, tornando ainda mais pequenos os homens em suas catedrais.

No hostal onde me hospedei, quase todo ocupado de peregrinos, especulo com alguns deles os resultados da experiência. Um jovem espanhol que liderava um imenso grupo de senhoras e senhores bem mais velhos relata seus sofrimentos físicos. Com a chuva, frio e vento intensos que atingiram a província nos últimos dias, teve de trocar o tênis pela bota, judiando ainda mais os pés, que resultaram cheios de calos e doloridos. As senhoras, idosas, eram a própria imagem da exaustão. Como não teriam a menor condição de escalar seus beliches no segundo andar, pediram que eu trocasse de quarto. Claro que atendi. E Santiago me ajudou: escapei de um sarau da terceira idade e fui parar num quarto, sozinho, com uma inglesa loirinha.
Como cheguei de madrugada e o quarto tava escuro, imaginei se tratar de um homem. de manhã dei de cara com a serelepe, ali, a um metro de minhas mãos carinhosas. Ela puxou assunto e tentamos um diálogo meio trôpego, por causa do meu Inglês de rodoviária. Pior ela, monoglota, que não dominava nem um “buenos diasem espanhol.

Num bar onde provamos a melhor rodada de frutos do mar deste mundo, encontramos três meninas bacanas de Sevilha. A conversa começou pelo futebol. Eu perguntava a origem do jogador Puyol, atleta que mais número de vezes vestiu a camisa do Barsa, acreditando ser catalão. A mais linda das três, morena de fechar quarteirão, interrompe minha conversa com o Luís e informa: “ele é daqui da Galícia”. Hummm. Era o que faltava. Depois de longo papo eu pergunto às chicas, que recém chegaram da caminhada: “E a experiência mística, como foi?”. A morenaça: “Não foi”. Então, que venga el vino de Galícia.

Mamãe passou açúcar em mim

Depois de maduro virei o rei da simpatia, xodó de velhas e velhos, principalmente. Assim tem sido nas minhas andanças por aqui, em todos os cantos, hotéis, restaurantes, onde vá. Dessa vez é o casal que administra o hostal, senhor César e sua simpaticíssima senhora. Tão gentis que enjoam. Parece que sou o filho mais velho deles. Desde a chegada, havia batido um longo papo, primeiro com ela, depois com ele. Na primeira manhã, ele me convida a um café no bar do hotelzinho. A mulher me cobre de mimos e pergunta se quero algo, se desejo trocar de quarto, essas coisas. Digo que voltarei no próximo ano para minha lua de mel, tão lindo é este lugar. Ela comemora, promete uma suíte especial para esses momentos (sem testemunhas no quarto) e pergunta pela noiva. Eu digo que o processo ainda está em licitação. Logo teremos uma moça escalada para a nobre função.

No dia seguinte o senhor César me convida novamente, desta vez a um vinho gallego no mesmo bar. Logo chega a “minha” inglesinha e se junta ao grupo. Faz um esforço hercúleo para me perguntar coisas simples, com aqueles guias de conversação que um dia também tentei usar, inutilmente. “Estarrr... gostandoooo.... da.... sua/tua estânciaaaa?”. Pergunta ela, sem deixar claro se o pronome é na segunda ou terceira pessoas e sem acentuar fortemente a interrogação. depois consigo explicar que minha viagem vai muito bem, obrigado. Mil vezes falar no meu inglesinho safado.


Até achei que a galega tava arrastando a asa pro meu lado. Tinha marcado uma bagaça com meu amigo Luís: tomar uns gorós e umas tapas da maravilhosa comida gallega, à base de mariscos. Convidei a gringa, mas ela, previdente, recusou, alegando alguma coisa, que esses latinoamreicanos não são gente em quem confiar. Fez bem. Meus planos para ela eram os piores possíveis. Cheguei novamente tarde e estava a inglesa, posta em seu leito, a cabeça de fora dos lençóis. Ainda pensei numa charla, mas, por uma imperdoável imperícia, acendi a luz para pegar não sei o que. Não foram nem três segundos de luz acesa, mas suficientes para que a moça abrisse os olhos e me fuzilasse com o olhar mais ameaçador que um inglês colonizador pode ter. Dormi quietinho, antes que essa feminista disparasse um desaforo na única língua em que sabe se virar. De manhã cedo ela arrumou seus panos e foi embora de minha vida. Eu fiz um juramento: não bebo nunca mais!


    

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Tapas (6)

A fobia dos aeroportos

Minha simpatia pelos árabes foi maior do que a atual. No momento prefiro as delícias de sua culinária a me alinhar com a clássica posição de esquerda que abomina, a priori, Estados Unidos, Israel e o ocidente, em favor de toda e qualquer causa identificada com os interesses árabes. Primeiro, porque, em matéria de geopolítica, o buraco é mais embaixo e fundo. Nãopara, num lance de bravata, escolher o lado como quem escolhe um time pra torcer no futebol. Depois, uma coisa, embora pareça prosaica: depois dos atentados de Nova Iorque, Londres e Madrid, coisas simples como viajar de avião se tornam cada dia mais pesarosas. Sem querer abrir um debate sobre isso, uma coisa tem a ver com a outra.
Semana passada, viajando para Berlim e levando apenas uma pequena mochila, nem por isso deixo de ser molestado pelos policiais do controle do aeroporto de Barajas. Na boa, me tomaram um desodorante, porque o frasco, em vez dos permitidos 100 ml, continha o volume de 150 ml. Quem manda eu não saber o óbvio, que 100 ml de desodorante não fazem nem cosquinha, mas a poderosa carga de 150 pode derrubar um A330? E se foi meu patrimônio. Como diria seu Samuel Blaustein, da Escolinha do Professor Raimundo: 5 euros menos na bolsa do papai aqui.

Cigaro, e

Outro dia falei aqui no blog sobre o quanto se fuma neste país e atribuí a uma tese minha, fruto da observação do meu instituto de pesquisa caseiro, o DataCorreia, ao frio infame que invade este continente a partir de setembro ou outubro e se espraia até maio ou junho. Mas meus argumentos foram desmascarados pela civilidade dos alemães, que fumam infinitamente menos e, quando fazem, não invadem o espaço alheio, como vemos aqui. No entanto, Berlim é mais fria e úmida que a capital do norte da África, Madrid.
A propósito, no mesmo aeroporto de Barajas tem umserviçoque diz bem da estupidez espanhola: trata-se de uma “sala para fumantesem pleno meio das alas de embarque, onde os que não podem ficar duas horas sem fumar se deliciam à custa da saúde de todos, incluindo crianças. É óbvio que essa idéia de jerico não funciona, até porque a sala, um aquário de vidro, fica o tempo todo com a porta aberta.

Um Kiarostami europeu

A morte do jornalista Juarez Conrado, importante figura da imprensa em Aracaju durante décadas, motivou comentário de um ex-aluno, nas redes, lembrando a projeção que realizei em sala de aula da minissérie “A última semana de Lampião”, baseada em livro de Juarez. O ex-aluno, hoje brilhante colega, diz que nunca esqueceu a série, pelas intermináveistomadas iranianas”, referindo-se aos longos planos seqüências (a filmagem de uma ação contínua num único plano) que viraram marca do “novocinema iraniano.
Novidades à parte, resulta que o Irã tem um dos poucos diretores que mantém o frescor e a força de um cinema inovador, criativo e belo. Abbas Kiarostami, com uma longa filmografia no currículo, fez sua primeira incursão fora da terra do simpático Armadinejad.
É uma produção franco-italiana, rodado na Itália, com minha queridinha Juliette Binoche, que em espanhol se chamaCópia certificada”, um filme interessante, que brinca com a dualidade da relação falso/verdadeiro, tão cara aos nossos dias. Não tem os tais planos de dez minutos, como brincou meu ex-aluno, mas traz os delicados silêncios, pausas e mistérios que anunciam a mão talentosa de Kiarostami.
Ah, para as mulheres, em especial, sugiro verDez” (havia na locadora de Ana Valença, mas creio que fechou), que é um dos melhores filmes que vi na vida. Simples, barato e ... genial. E com aquelas mulheres lindas de Teerã.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Rumo à estação Berlim

Mais uma vez tomo a estrada a preços camaradas, da passagem da Easy Jet ao hostal (albergue da juventude), se bem que, nas demais coisas, a capital alemã se mostrou surpreendentemente barata, mais que Madrid, o que é absurdo, posto que a Espanha, como se sabe, está de pires na mão. Come-se um maravilhoso joelho de porco com chucrute, batatas e uma cerveja por apenas oito euros. Um Döner Kebab, que em Madrid custa cinco, sai por três lá. Idem para as comidas chinesas e, claro, todos os preparos que levam a salsicha, tradicional na culinária do país.

Estive na Alemanha em 1995 e, na época, viajei de carro por várias cidades. Mas foi, como diz um amigo de Aracaju, como as excursões da professora Mariá, daquele colégio tradicional cujo nome me foge agora, que, segundo ele, é do tipo: a Europa em 20 dias conhecendo 25 capitais. Agora fiquei só em Berlim, por quatro dias, o que não dá pra conhecer a cidade em detalhes, mas pelo menos o fundamental. Na Alemanha, me toca, desde a outra viagem, um certo sentido de mea culpa constante, onipresente, como se pedissem desculpas a toda hora. E que as lições foram aprendidas, ao preço amargo que a História lhes imputou.

Não há dúvidas de que o modo politicamente correto de agir foi inventado aqui. Está em tudo, no respeito às diferenças, ao indivíduo, aos direitos e, principalmente, numa obediência cega às leis, coisa que os tornam muito obtusos em grande parte. Mais literais que os alemães, só os portugueses, que levam a vida ao pé da letra e não têm elasticidade nem para entender piadas de outros lugares.

Mas a Alemanha e os alemães têm razão em bater diariamente na mesma tecla: eles, mais que ninguém, conhecem na pele o circo de horrores que a humanidade é capaz de promover, de uma hora para outra, baseada na única explicação plausível: que a loucura humana é uma das coisas sobre as quais não conhecemos os limites. Que a besta feroz que habita cada um de nós, desde os mais pacatos pais de família, é algo que desperta do nada para explodir rapidinho em genocídios brutais. E isso tudo foi ontem, se considerarmos os tempos da História. Ademais, a recente selvageria da ex-Iugoslávia e depois a guerra de Kosovo, mostram que o horror avança sobre nossos dias. Há quem diga que algo parecido está por explodir entre os povos do Cáucaso.



Um curso de História viva nas ruas



Olha só que idéia bacana. Guias arrastando turistas pelas ruas centrais de cidades do mundo é uma coisa comum, mas essa experiência em Berlim me pareceu genial. No hotel, ao buscar informações sobre city tours, essas coisas, somos informados de guias que percorrem alguns hostais para pegar pessoas num recorrido muito particular pelo centro. Antes, devemos lembrar que Berlim foi palco privilegiado de dois momentos dramáticos da história do século passado, primeiro, com as duas grandes guerras, com muito mais agravante na segunda, que fez o país capitular diante do mundo, numa rendição incondicional, humilhante.

Depois, justamente pelas conseqüências da guerra, a divisão do país entre aliados e soviéticos, que perdurou até 1989, com a derrubada do Muro de Berlim. Imaginem uma cidade de mais de 3 milhões de pessoas cortada ao meio por um muro da noite para o dia (sic!). E a partir daí, a sucessão de dramas, tragédias e fantásticas histórias de cada um dos lados.

Do meu hotelzinho, na praça Rosa de Luxemburgo, pegamos um metrô até as proximidades do portão de Brandemburgo onde o guia Xavi, um catalão de Barcelona, começa nosso périplo a pé pela história viva dessa cidade transbordante em história. Cada monumento, cada personagem, a cultura, as artes, a arquitetura da vida e da morte, tudo ganha uma dramaticidade ainda maior na narrativa do nosso guia, ele também um apaixonado pelo tema. Não havia city tour que desse conta de tanta informação num só dia, quer dizer, em cerca de seis horas de caminhada.

No final, dois registros interessantes: 1) Xavi, como havia prometido antes, volta ao tema da queda do muro e faz um relato detalhado, carregado de emoção e suspense, como um roteiro de cinema, passo a passo, a agonia e o futuro dos alemães se desenhando naquele 9 de novembro. Os detalhes pitorescos, alguns deles fundamentais para que o movimento se tornasse irreversível, precipitando assim o desmonte da Alemanha Oriental e sua absorção pelo lado capitalista.

2) Por fim, como havia sido anunciado no início, todos deveríamos pagar o guia Xavi com uma contribuição espontânea. Achei curioso que alguém aceite estipular o pagamento do seu trabalho numa aposta tão incerta, mas parece que o catalão Xavi confia na sua capacidade de seduzir sua platéia com a matéria prima de seu ofício, qual seja, contar a história, nada além disso. No final, a impressão é que todos estávamos mais que satisfeitos, por uma aula que nem os museus nos dariam, porque estes, sempre temáticos, dariam, no máximo, versões incompletas. E presenciei notas de dez e vinte euros parando nas mãos do modesto Xavi. Nas minhas contas, na média de 10 por cabeça, rendeu cerca de 300 euros. A influência itabaianense sobre minha alma desprendida logo calculou, por baixo, um faturamento de uns 3 mil/mês. Nada mau, para um jovem de 27 anos que foi parar em Berlim, como me disse depois, “por ainda não saber o que queria fazer na vida”.

Ah, não me perguntem quanto eu dei pelo trabalho do rapaz, mas, pela descrição que fiz, dá para imaginar que não foi nada mal.