segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Alegre Bahia



Aos vinte anos, tudo é festa. Até mesmo a rotina tem uma graça incomum, que um dia, por fim, nos larga na estrada.  De manhã eu caminhava todo o Corredor da Vitória, contornava o Campo Grande e pegava o Circular R-1 na Araújo Pinho, no Canela, para uma viagem de quase uma hora até o Centro Administrativo da Bahia, onde me aguardavam as coroas do Centro de Informações e Estatística da Secretaria de Planejamento do Estado. Era estagiário, mas era o único homem reinando num harém de velhotas fogosas, as conversas mais safadas, como nos romances de Jorge Amado. Depois chegou um estagiário de nível médio, Luis Moura, hoje aracajuano, instalado no escritório local do Diese. Luis disputava comigo as atenções da colega Deonísia, uma baixinha ainda mais sibite, chicleteira e encrenqueira, odiada pelo conselho das chefonas. Nunca fomos agraciados com os favores da morena.
O estágio era minha salvação de menino pobre, sem recursos para custear meu custo, quase zerado, de tão modesto. Ganhava menos de um salário mínimo, filava a bóia e lia diariamente os quatro grandes jornais do país (Folha, Estadão, JB e Globo).  Meio dia, no calor da Bahia, chacoalhava de volta para o Canela, dormindo nas latas velhas da viação Salvador Cidade do Sol, direto para as aulas na Facom. Às vezes tava tão cansado, que escondia o inevitável cochilo por trás de uns velhos óculos de soldador, daqueles bem pretos, moda entre os maconheiros do circuito “Ex-Tudo”-“Café Teatro” . Meus colegas, sabendo do truque, costumavam tirá-los do rosto e eu acordava com a sala inteira zoando aquele pobre sergipano.
Às seis ou sete, caminhava de volta para a Residência Universitária da UFBa, a lendária R1, dependendo da programação que rolava no flamboyant em frente à escola, uma espécie de curso paralelo ministrado pelos anarquistas que ali professavam a negação do jornalismo tradicional. Lá estiveram, para shows e conversas, dentre outros, Jorge Mautner, Galvão dos Novos Baianos e Léo Jaime em início de carreira. No caminho, o Campo Grande era lindo (pois é, eu via beleza e uma certa poesia no céu plúmbeo de Salvador, um crepúsculo quente e úmido, mas inundado de uma estranha alegria). Passava em revista bancas de frutas e de jornais e mirava a vizinhança rica da Vitória. Por fim, estava no lugar que eu chamava de casa, o quarto 15 da R1, a residência de muita história, glórias e paixões, sexo e política, amor e tragédias. Não raro, quando ainda restava uma fresta de sol, descíamos a ladeira da Barra, eu e meus irmãozinhos pobres, para um mergulho no Porto, um tapinha, umas cevas, um xamego. Numa dessas descidas, encontrei Caetano,  Gil e sua entourage, derramados de frescura, fazendo tipo, trocando bitoquinhas. Um selvagem criado em Itabaiana não poderia concluir outra coisa: e eles são viados?
O Porto da Barra foi meu território mítico, o lugar do encantamento e dos grandes romances. Era ali que debatíamos as coisas do Brasil. Era o fórum da esquerda light (ou, se querem, festiva sim, sem culpa), dos acertos do finde e das festas gratuitas numa cidade que ainda não era tão imensa e tão bruta, uma Salvador que, acreditem, a gente dominava como nossa. Dali saímos uma vez, véspera de semana santa, direto para o outro lado da ilha, em Berlinque, onde ouvi a garota-mais-linda-de-todos-os-santos-da-Bahia cantar “Você é linda”, de Caetano, quando as rádios mal conheciam. Dali saímos, outra vez, para um acampamento totalmente outsider, com barracas precárias e sem comida, levados pela vontade de passar o fim de semana fazendo amor com nossas namoradas. Três dias comendo abóbora crua com arroz doado pelos moradores, e o sexo, a cada sessão, lavado numa romaria em grupo nas águas da Baía de Todos os Santos. Cabelo ao vento, gente jovem colorida: roupas pra que te quero. Do outro lado, as luzes de nossa ribalta soteropolitana tilintavam outras alegrias que nos deixavam saudosos, a vontade de estar lá também, fruto de uma impermanência latente.
Ontem voltei ao Porto da Barra, trinta anos depois, para um mergulho que lavou minha alma num território que parece o mesmo, a mesma fauna humana, os mesmos trejeitos da velha Cidade da Bahia. É incrível, mas avistei vendedores que conhecia dos anos 80, meninas que se tornaram mães ou avós, ainda  com uma graça no jeito de levar a vida, talvez por obra daquela maresia única, o mesmo cheiro que me invadiu de saudades. Pelo menos aqui, Caetano, eu não canto “Triste Bahia...”. Porque todo porto é feliz.