segunda-feira, 4 de maio de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (VIII)


A memória política do Brasil, por Sebastião Nery
Da biblioteca de Papai, leio "Leandro Maciel – Perante Sergipe", de J. Freire Ribeiro. Vale pela história do grande líder udenista, chefe político do Estado durante anos, até a fragorosa derrota para Gilvan Rocha em 74, nas célebres eleições em que o MDB elegeu uma caçambada de senadores pelo país. Mas é mais do mesmo, a crônica do poder, por um apaixonado militante da causa.
Em “Ninguém Me Contou, Eu Vi”, Sebastião Nery, baiano de Jaguaquara, ex-tudo na imprensa brasileira, ex-líder estudantil, vereador por Belo Horizonte, deputado estadual pela Bahia e federal pelo Rio, naquela fornalha eleita com Brizola em 1982, uma eleição também célebre, porque Brizola era a esquerda no Rio de Janeiro, com os principais intelectuais, artistas e todos os desejavam enterrar o “Chaguismo”, a corrente emedebista no Estado, tão governista que, mesmo numa ditadura, os militares deixaram o Rio sob o comando de Chagas Freitas, do MDB.
Tenho lido outras preciosidades do jornalista Nery, uma figura que depois fez suas escolhas, aderiu a Collor e foi adido cultural em Paris. Mas se o leitor for capaz de passar álcool gel nos preconceitos e focar tão somente no valor histórico, a leitura é uma mão cheia. Mesmo porque, antes do autor fazes tais opções, produziu uma densa obra, como um relato jornalístico por vários países socialistas nos anos 80. Funciona como uma radiografia ou um balanço, naquela quadra, do estágio e dos resultados dos governos socialistas no mundo inteiro.
Nery, antes de virar bicho na ótica da esquerda de plantão, teve uma longa trajetória nesse campo. Por essa época circulou em vários países os Cadernos do Terceiro Mundo, uma proposta interessante de jornalismo alternativo ao mainstream, às grandes agências de notícias e redes de televisão. Nery fez parte dessa história. Os Cadernos circulavam, que eu saiba, na África lusitana, toda a América Latina e, creio, nos países do leste europeu. Seu projeto editorial era liderado por Neiva Moreira, grande jornalista maranhense estabelecido no Rio, ligado a Brizola, que também foi deputado federal numa suplência. Conheci Neiva, que já o lia no Pasquim, nos meus tempos de Maranhão, na TV Difusora. Boa prosa, ele gostava de ir na redação para alguma entrevista ou apenas a troco da boa conversa. Uma figura.
Outro livro de Sebastião Nery é seu relato sobre a Revolução dos Cravos, a liberação portuguesa que pôs fim a 40 anos de Salazarismo, a ditadura encarnada em António de Oliveira Salazar, o equivalente português do ditador espanhol Francisco Franco. A riqueza do texto é o fato do jornalista cumprir aquela máxima da “testemunha ocular da História”, ou seja, ele tava em todos os lugares e na hora em que os fatos se desenrolavam. É incrível a capacidade desse jornalista estar sempre no lugar e na hora certos, em todas as suas coberturas. Na política brasileira não foi diferente e neste “Ninguém Me Contou, Eu Vi”, Nery só confirma o golpe de sorte ou de destreza: está em todas, mas não só observando, se não fazendo parte do enredo.
Para além de fazer um passeio por nossa história contemporânea pelo olhar não acadêmico, ou seja, de um jornalista de jornais, farejo a presença de sergipanos nessa história, que, a rigor, é a nossa história política no século passado. E a menção ao velho Leandro é porque é o único, ao lado de Seixas Dória, que aparece algumas vezes no livro. Outro que é citado algumas vezes é Joel Silveira, disparadamente o sergipano mais influente no cenário nacional no século XX, por tudo que foi e fez, íntimo do poder, mas de uma intimidade útil apenas para contar suas histórias, e não pelo poder em si. Joel, ao contrário, sempre foi um boêmio, desprendido de apegos e disposto mais a cultivar suas feéricas brigas com gente como Jorge Amado, dentre outros.
Mas causa espécie que só esses dois políticos, Leandro e Seixas, dois ex-governadores, apareçam no livro, já que Nery cobre um trecho que vai de Getúlio a Dilma. E, entre os sergipanos, ninguém mais consta. Ninguém é ninguém.
Leandro surge quando era virtualmente o candidato a vice na chapa de Jânio Quadros, o que seria um feito inédito para nossa invisibilidade política. Note-se que tivemos um pouco antes intelectuais absolutamente influentes e respeitados, como Silvio Romero e Gilberto Amado, mas na esfera estrita do poder o que tivemos de mais prestigiado foi a presença de Lourival Fontes no famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas, o DIP da repressão aos opositores ao regime. Mas não foi daquela vez que Sergipe se redimiu de sua opacidade histórica, palavrão que recorro para não usar o incômodo insignificância. Maciel foi desalojado da chapa antes que se ela se efetivasse, ignorado que era pelo próprio Jânio, segundo Nery, que o chamava de “ataúde de chumbo”, ou seja, o atual mala.
Dória, diferente, aparece várias vezes e sempre levado a sério, em reuniões decisivas, com quem decidia, mesmo no campo da oposição. Ele foi deputado ligado à gente como Miguel Arraes, o próprio João Goulart e tantos outros que resistiram à ditadura e exerceram o poder a partir de 1985. Ele mesmo foi preso e cassado em 64, despachado do Palácio Olímpio Campos para Fernando de Noronha. No governo Sarney, da Aliança Democrática feita de PMDB com PFL, Seixas foi presidente da Petromisa e teve influência na política local. Eloquente, mas simples, de vida espartana, nunca deixou de exercer um certo charme entre seus companheiros da esquerda no núcleo do poder nos anos 50 e 60. Conheci Seixinhas, como era chamado por aqui, nos anos em que atuei na sucursal da Tribuna da Bahia e na TV Sergipe, editando e co-apresentando o Bom Dia. Até hoje lamento não ter explorado mais a riqueza da experiência deste sergipano que foi, de fato, um dos poucos que brilharam lá fora.

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