A inevitável força do acaso me jogou para todos os cantos do mundo desde
cedo, de uma maneira tão irremediável, que resultei me sentindo em tantas
cidades e ao mesmo tempo em nenhuma delas. Esse mundo do trabalho e da vida que
nos impõe uma desterritorialização, me fez órfão de endereço fixo. No dizer dos
Titãs: “Não sou de nenhum lugar/ sou de lugar nenhum”. E antes que soe
lamuriento, vos asseguro: isso não é bom nem ruim, melhor ou pior do que
poderia ter sido. Apenas um registro de coisas como o pouco tempo que a vida me
deu para reviver na doce e pequena Macambira os primeiros sinais de vida,
justamente aqueles que nos marca, lapida e garimpa pelo resto de nossos anos.
Anos depois, talvez já muito tarde, busquei em vão retomar laços perdidos, mas,
como a Itabira de Drumond, fotografia na parede, a “minha” cidade já não
existia: Macambira vive na minha memória.
Em Itabaiana cheguei aos dez e fiquei até os dezessete, tangido pela
aprovação em Engenharia na UFS. Mas lá ficaram os demais, a maioria deles, pai
e mãe principalmente, razão que fez dela um razoável porto seguro, onde sei que
tenho cama cativa. A Aracaju que parecia a parada final só me abrigou por três
anos, o suficiente para a Engenharia desistir de mim, antes que eu dela. Fui
viver, conforme Gil e Caetano, na Cidade da Bahia, uma estranha gente que nos
via como “o quintal da Bahia”, proféticas premonições de que um dia, muito
tempo depois, surgiria aqui um grupo de empresários musicais dispostos a nos
devolver a condição de colônia, colonizados que nos mostrávamos entre requebros
e abadás.
Vivi uma Salvador que trazia nos becos da velha cidade o fantasma
ainda fresco de Gláuber Rocha, o cinema “de arte” dos Bairris, as festas na
faculdade de Medicina do Canela, cerveja e pilombeta no Terreiro de Jesus, as
putas do Maciel, o projeto Pixinguinha no TCA, todas as peças de Nelson
Rodrigues na Escola de Teatro da UFBa. A residência estudantil das meninas na
Araújo Pinho, a residência de Jacobina, as mijadas nas centenárias árvores do
Campo Grande. Alegre Bahia onde busquei régua e compasso para outros traços.
Triste era a Bahia oficial que eu ignorei do começo ao fim. Tanto que no
carnaval eu largava antecipadamente minha morada, no Corredor da Vitória, antes
do primeiro baticum. Ia descansar minha cabeça em amores sergipanos numa
Atalaia Nova bucólica, de tantas lendas e tantos ais.
E assim fui por aí, Oropa, França e Bahia. Começando pelo Paraná,
depois Cuba, a francesa São Luís do Maranhão, outro tanto em Maceió, mais cinco
anos entre o Rio Grande do Sul e seis meses em terras de Espanha. Comigo houve
de ser assim: sempre estou indo, sempre voltando. Aracaju nunca me foi
estranha. Aqui, faço cara feia ou bonita sempre que me aprouver, porque sou
dono do meu sorriso. Aqui recomeço como se nunca tivesse nada interrompido.
Aqui sou unha e carne, fogo e paixão, encantamento e enfado, onde minha dialética
se aplica no correr dos dias e noites.
A primeira Aracaju era o lugar para onde Papai ia todos os meses para os
deveres de sua Exatoria em Macambira e voltava com a pasta cheia de maçãs,
aquela fruta nobre, deliciosa, de algum lugar que só poderia ser muito distante
de nossas jacas e pitombas. Era o lugar que eu pensava onde moravam aqueles
artistas do álbum de figurinha Coleção 69, Roberto Carlos, inclusive. Lembro de
Mamãe demonstrando um certo ciúme de Ângela Maria, a cantora, sei lá eu por
quais motivos. Mas, como ela morasse ali onde Papai ia com uma frequência capaz de
criar limo, não tive dúvidas: “Papai deve estar comendo esta moça”. Ele chegava
com sua pasta de documentos e eu corria, antes das minhas irmãs, para pegar uma
das maçãs destinadas aos cinco filhos (Serginho só veio depois, já em
Itabaiana). Jamais, em toda minha vida, senti o cheiro de maçã como o da pasta
de Papai, um maravilhoso aroma também colado à minha memória de forma
definitiva.
Por essa mesma época, comecei a fazer viagens curtas para as visitas a um
dentista, no cruzamento dos calçadões. Papai parava sua imensa Rural na Rua da
Frente, cujo rio Sergipe me foi apresentado por Mamãe como sendo “O Mar”. Hoje,
sabedor de que as palavras não contêm os atos e os pensamentos, sei muito bem
que minha mãe se referia a uma boca de barra, nem tanto rio, nem mar ainda. Depois
vieram outras e outras Aracajus, sobrepondo-as umas sobre as anteriores como
camadas, a minha vida feita aqui, com paradas, idas e retornos, mas com o
sentimento de que acabei grudando nela, como parte de mim, a cidade a quem eu
recorro quando, em algum lugar mais remoto, alguém me pergunta de onde sou.
Para não alongar a resposta, nem tornar minha localização um exercício penoso a
quem pergunta, dou minhas coordenadas: ”Sou de Aracaju, Sergipe, no nordeste do
Brasil”.