segunda-feira, 17 de março de 2014

Aracaju também é minha


A inevitável força do acaso me jogou para todos os cantos do mundo desde cedo, de uma maneira tão irremediável, que resultei me sentindo em tantas cidades e ao mesmo tempo em nenhuma delas. Esse mundo do trabalho e da vida que nos impõe uma desterritorialização, me fez órfão de endereço fixo. No dizer dos Titãs: “Não sou de nenhum lugar/ sou de lugar nenhum”. E antes que soe lamuriento, vos asseguro: isso não é bom nem ruim, melhor ou pior do que poderia ter sido. Apenas um registro de coisas como o pouco tempo que a vida me deu para reviver na doce e pequena Macambira os primeiros sinais de vida, justamente aqueles que nos marca, lapida e garimpa pelo resto de nossos anos. Anos depois, talvez já muito tarde, busquei em vão retomar laços perdidos, mas, como a Itabira de Drumond, fotografia na parede, a “minha” cidade já não existia: Macambira vive na minha memória.
Em Itabaiana cheguei aos dez e fiquei até os dezessete, tangido pela aprovação em Engenharia na UFS. Mas lá ficaram os demais, a maioria deles, pai e mãe principalmente, razão que fez dela um razoável porto seguro, onde sei que tenho cama cativa. A Aracaju que parecia a parada final só me abrigou por três anos, o suficiente para a Engenharia desistir de mim, antes que eu dela. Fui viver, conforme Gil e Caetano, na Cidade da Bahia, uma estranha gente que nos via como “o quintal da Bahia”, proféticas premonições de que um dia, muito tempo depois, surgiria aqui um grupo de empresários musicais dispostos a nos devolver a condição de colônia, colonizados que nos mostrávamos entre requebros e abadás.
Vivi uma Salvador que trazia nos becos da velha cidade o fantasma ainda fresco de Gláuber Rocha, o cinema “de arte” dos Bairris, as festas na faculdade de Medicina do Canela, cerveja e pilombeta no Terreiro de Jesus, as putas do Maciel, o projeto Pixinguinha no TCA, todas as peças de Nelson Rodrigues na Escola de Teatro da UFBa. A residência estudantil das meninas na Araújo Pinho, a residência de Jacobina, as mijadas nas centenárias árvores do Campo Grande. Alegre Bahia onde busquei régua e compasso para outros traços. Triste era a Bahia oficial que eu ignorei do começo ao fim. Tanto que no carnaval eu largava antecipadamente minha morada, no Corredor da Vitória, antes do primeiro baticum. Ia descansar minha cabeça em amores sergipanos numa Atalaia Nova bucólica, de tantas lendas e tantos ais.
E assim fui por aí, Oropa, França e Bahia. Começando pelo Paraná, depois Cuba, a francesa São Luís do Maranhão, outro tanto em Maceió, mais cinco anos entre o Rio Grande do Sul e seis meses em terras de Espanha. Comigo houve de ser assim: sempre estou indo, sempre voltando. Aracaju nunca me foi estranha. Aqui, faço cara feia ou bonita sempre que me aprouver, porque sou dono do meu sorriso. Aqui recomeço como se nunca tivesse nada interrompido. Aqui sou unha e carne, fogo e paixão, encantamento e enfado, onde minha dialética se aplica no correr dos dias e noites.
A primeira Aracaju era o lugar para onde Papai ia todos os meses para os deveres de sua Exatoria em Macambira e voltava com a pasta cheia de maçãs, aquela fruta nobre, deliciosa, de algum lugar que só poderia ser muito distante de nossas jacas e pitombas. Era o lugar que eu pensava onde moravam aqueles artistas do álbum de figurinha Coleção 69, Roberto Carlos, inclusive. Lembro de Mamãe demonstrando um certo ciúme de Ângela Maria, a cantora, sei lá eu por quais motivos. Mas, como ela morasse ali onde Papai ia com uma frequência capaz de criar limo, não tive dúvidas: “Papai deve estar comendo esta moça”. Ele chegava com sua pasta de documentos e eu corria, antes das minhas irmãs, para pegar uma das maçãs destinadas aos cinco filhos (Serginho só veio depois, já em Itabaiana). Jamais, em toda minha vida, senti o cheiro de maçã como o da pasta de Papai, um maravilhoso aroma também colado à minha memória de forma definitiva.

Por essa mesma época, comecei a fazer viagens curtas para as visitas a um dentista, no cruzamento dos calçadões. Papai parava sua imensa Rural na Rua da Frente, cujo rio Sergipe me foi apresentado por Mamãe como sendo “O Mar”. Hoje, sabedor de que as palavras não contêm os atos e os pensamentos, sei muito bem que minha mãe se referia a uma boca de barra, nem tanto rio, nem mar ainda. Depois vieram outras e outras Aracajus, sobrepondo-as umas sobre as anteriores como camadas, a minha vida feita aqui, com paradas, idas e retornos, mas com o sentimento de que acabei grudando nela, como parte de mim, a cidade a quem eu recorro quando, em algum lugar mais remoto, alguém me pergunta de onde sou. Para não alongar a resposta, nem tornar minha localização um exercício penoso a quem pergunta, dou minhas coordenadas: ”Sou de Aracaju, Sergipe, no nordeste do Brasil”.