segunda-feira, 4 de maio de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (XII)


O chamado brasileiro médio é uma abstração construída pelos sociólogos e que representa não esse tipo bonachão, simpático, o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda ou o de Belchior, aquele que diz sempre “com licença, por favor”. Nosso brasileiro em questão é o mais corriqueiro, aquele que existe desde Cabral e que o jogador Gérson celebrizou no famigerado comercial do cigarro Vila Rica (“o importante é levar vantagem”), estabelecendo desde então a lastimável Lei de Gérson, a única que a classe média brasileira cumpre com devoção canina. Os mais ricos e mais pobres também têm o mesmo apreço para a tal lei, que significa a adoção do salve-se quem puder em todos os campos da vida.
Assim somos desde sempre, para ilustrar nossa ignorância, ausência de protocolos, desrespeito ao próximo e egoísmo criminoso. Na literatura, talvez Nelson Rodrigues tenha sido quem melhor descreveu nossas iniquidades. Agora pulemos para a vida real da pandemia.
No Mosqueiro há um supermercado antes chamado de Pão de Açúcar, embora de nome pretensioso, um simpático mercadinho frequentado pela gente simples do lugar e os passantes melhor providos. Após a chegada do “verdadeiro” Pão de Açúcar em Sergipe, o proprietário, rapaz simples, conterrâneo meu de Macambira, logo tratou de rebatizar seu negócio para Paseo, que não sei o que significa, mas ele, certamente, sabe o que significa peitar os tubarões da gigante fundada por Abílio Diniz.
Nesses dias de pangonia nossas compras são nervosas, com olhos tensos para quem passa por nós raspando a tinta e espalhando vírus no ar. Infelizmente, lá no Paseo, como em qualquer lugar, pais e mães irresponsáveis ainda insistem em levar filhos pequenos para esses passeios, com o perdão do trocadilho. Sabe-se lá o que explica pais levarem crianças numa ida ao supermercado, mas o fato é que muitos não acham isso, ou não se incomodam com a vida de seus pequenos e do resto das pessoas. Daí, ignoram os riscos que ambos representam num contato que poderia ser evitado.
Sábado passado, em meio ao mencionado nervosismo das compras, somos obrigados a desviar de um par de moleques malcriados, um deles já grande, jeitão de abobado, fazendo dos corredores do modesto Paseo o playground para brincadeira de criança pequena. No caixa, o responsável pelo retardo dos meninos, pai branco, cara de bem nascido, máscara na sua cara de mascarado e olhar furioso da classe média quando alguém ousa contrariar suas vontades. Ninguém ousou reclamar, mas muitos dirigiam o olhar de reprovação para o marombado pai, tão cioso de si, tão negligente com os outros.
Na porta do super, desconhecendo regras, desprezando o amplo e vazio estacionamento da empresa, um portentoso Audi preto aguardava completamente irregular, interrompendo o fluxo, prejudicando a mobilidade. Nada mais que um caso comum de trânsito, como cantava o mesmo Belchior, nossa classe média mal educada e arrogante, rasgando regras e cuspindo perdigotos em nossa cara. Pelo visto, seguirá sendo assim em mais outros 500 anos. Toca a vinheta: Brasil, zil, zil!

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