quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Tabaréus danados de bons


Quantos municípios sergipanos podem contar, neste momento, com um leque de autores locais escarafunchando aspectos de sua história e cultura, sob os variados pontos de vista com os quais se olha para esses temas? Talvez nem mesmo a capital do Estado responda à pergunta com a rapidez com que se pode dizer de Itabaiana, que, nos últimos anos, coleciona preciosas contribuições à sua historiografia e ao vasto repertório cultural da cidade. E olhe que não estamos falando de autores consagrados. Vivos, como Vladimir Souza Carvalho, ou mortos, como Alberto Carvalho. Em Itabaiana, como se aquela região entendesse que o acesso universal à informação quebrasse as panelinhas instituídas na produção cultural, uma profícua rama de novos atores vem se impondo com firmeza neste campo.

Agora mesmo, José Augusto Baldocki, que já tinha publicado nos últimos anos uma rica seleção de histórias vividas pelos personagens da cidade, contadas com a graça de poucos, prepara novo volume de suas crônicas cada vez mais indispensáveis. No mesmo instante, filhos de José Crispim de Souza distribuem com sucesso uma coletânea de poemas do honrado comerciante de tecidos estabelecido durante décadas no comércio local e que, nas melhores horas, teceu uma obra digna de atenção. Mas o registro da hora é de “Os tabaréus do Sítio Saracura”, publicação independente de Antônio Francisco dos Santos, um economista e ex-jornalista que, no desejo de contar a própria história, terminou percorrendo um trecho importante na história de povoados itabaianenses desde o século XIX.
A rigor, o autor vai muito além dos parentes próximos que habitavam os torrões das Flechas, Terra Vermelha, Caraíbas, Matapuã, Pé do Veado e outros povoados que circundam a sede do município. Ao mergulhar numa pesquisa de fôlego, vai encontrar soldados holandeses fugidos de Pernambuco após a expulsão, pelos portugueses, e da retirada dos chefes militares para a Europa. Ou aparentados de nobres portugueses contemplados com sesmarias nas terras férteis entre o litoral e o sertão, onde se ergueria mais tarde a Vila das Santas Almas de Itabaiana-Grande. Dos cruzamentos entre os bárbaros europeus, homens embrutecidos pela guerra constante em terra e mar, e as índias tupinambás do litoral nordestino, foi-se cunhando os traços de um povo peculiar, de cultura muito típica e que talvez responda majoritariamente à idéia de sergipanidade difundida por Luiz Antônio Barreto.
O esforço é para chegar nas Flechas da primeira metade do século XX, do ferreiro Totonho Bernadino, o avô que o inspirou por toda a vida, e a avó Mãe Céu, mulher forte, dessas que bem representa o antigo matriarcado do nordeste brasileiro. Dali, uma ponte com a Terra Vermelha de Zé de Pepedo, o orgulhoso pai que lutou a vida inteira pelo seu modo de ver o mundo, contra a visão antecipada da mulher, Florita, filha do visionário Totonho, homem capaz de encontrar lugar para o lúdico no fanatismo religioso que impregnava o interior do Brasil até meados do século passado. Totonho, Zé de Pepedo, Mãe Céu, Florita, as tias, tios e as pessoas felizes ou trágicas que passam pela história de Antônio Francisco ganham a força de personagens dos grandes autores, talvez pelo fato de que Antônio Francisco seja também um grande autor. E é com esse talento que ele insere na história o menino Tonho, com uma riqueza de detalhes, lembranças e um perfil psicológico digno dos bons narradores.
Mais que um relato literário da saga dos Saracuras, cujo nome é explicado em detalhes e remonta lá atrás ao cruzamento de europeus com as índias do agreste sergipano, o Tonho adulto se vale do economista para explicar a sobrevivência econômica em sítios e fazendas, fazendo um relato minucioso do modo de vida da época: a agricultura, o preparo da terra, a colheita, a farinhada, a criação de pequenos animais e, principalmente, dos grandes, dos cavalos e bois, estes últimos representando a grande força econômica, com a pecuária de corte e leite e seu entorno: o carro de bois, o costume de nominar os animais, o preparo da carne de sol numa época sem energia elétrica.
O hábito de dar nome às coisas era estendido às fruteiras que davam sombra aos quintais. Assim, os jabeiros dos Saracuras tinham os nomes de Homero, Florita, Nete, etc, num mundo parecido com o realismo fantástico de Garcia Márquez, a ver pelo próprio Totonho, que falava com uma jaqueira providencial, socorro como ração do gado nas piores secas, ajoelhando-se junto ao tronco, elogiando suas qualidades e agradecendo a ajuda em horas tão difíceis. Totonho era chegado a qualquer ajuntamento que acontecia nas redondezas, como conta o neto: “Não faltava a nenhum reisado, comprando prendas, dançando com as figuras e cantando versos com os puxadores. E, muitas vezes, apaixonando-se perdidamente por alguma artista do espetáculo”.
Ao contar a luta do pai para sair da dura vida na roça, revela as origens de uma categoria social diferente do comerciante tradicional, a do negociante, um tipo de mascate que sai de sítio em sítio com o objetivo de comprar o pouco excedente da produção de subsistência (ovos, galinha, frutas, verdura, cereais etc) para vender em feiras, bodegas ou mesmo trocá-la por outros produtos, inicialmente de burro e depois pela estrada de rodagem. Vem daí a mística de Itabaiana como “celeiro” do estado e da região, como também a origem dos futuros comerciantes “ceboleiros” que vão se firmar como grandes empresários em Sergipe e em outros estados.  
Por fim, se ainda resta alguma dúvida sobre as qualidades do historiador Antônio Francisco, vale citar somente um dos inúmeros trechos em que a veia literária irrompe com força no seu relato e faz a história parecer romance, como na abertura do capítulo 10, ao descrever a tradição dos ferreiros naquela região: “Homens grandes de pele branca demais! O sol quente, inclemente, os tingia de manchas que depois se transformaram em feridas que não saravam mais. Eles nasceram e viveram aqui por acidente. Seus genes estavam programados para o sol ameno da Europa desde as gerações anteriores. Homens fortes, artistas do ferro! Toda uma raça dedicada à forja, fazendo foices, armas de fogo, pontas afiadas de flechas para os índios amigos, enxadas, armadores de rede e rodas de carro.”
De fato, o longo fôlego do escritor Antônio Francisco descende dos foles dos ferreiros ancestrais dos Saracuras. São farinha do mesmo saco, quer dizer, tabaréus da mesma linhagem.

(Publicado no Cinform, de 10 a 17/01/2010

Um comentário:

Anônimo disse...

Finalmente consigo chegar a você. Acho que sim. E dizer da minha satisfação pelo seu artigo.Obrigado!Depois do artigo (também agora no seu blog) mais gente vai confiar em ler "Os Tabaréus do Sítio Saracura".
É muito triste para o artista ver o teatro vazio, porque simplesmente as pessoas não souberam da peça ou não confiaram que ela prestasse.
Sei que a luta continua.Mas contarei agora com mais guerreiros, ou melhor, mais leitores que você conquistou. Obrigado de novo!

Antônio Francisco de Jesus afjsaracura@ig.com.br