sexta-feira, 27 de março de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (III)

A falência do chamado socialismo real pode ser comprovada amplamente, ao gosto do freguês: por farta literatura, cinema e as próprias ciências sociais. Na União Soviética e na Cortina de Ferro, essa derrocada passou na TV ao vivo, no mundo inteiro, com a queda do muro, o fuzilamento do casal Ceausescu na Romênia, a desintegração da Iugoslávia e o papa João Paulo II cantando de galo pra comemorar uma vitória quase pessoal. De minha parte, assisti à ruína do socialismo real em Cuba, nos três meses em que morei lá, em 1989, embora Cuba tenha muito que ensinar ao mundo e que, em alguns campos importantes da vida, exiba dados impressionantes. Mas no geral a conta fecha negativa, pelo nível de pobreza apresentado pela quase totalidade da população. Socialismo pra isso não serve, e foi isso que fez seu modelo ruir, ensejando, de quebra, o conceito de socialismo real, como se restasse a esperança de um socialismo utópico perfeito.
Continuo com a visão crítica para a vida e o mundo, mas carrego comigo a impressão de que a ideia de socialismo verdadeiro, aquele que faz jus ao nome e à justiça social em si, só funciona na morte. A morte é demonizada desde que largamos o berço e tomamos conhecimento dela, e não é pra menos, afinal, à exceção dos suicidas, ninguém quer largar o osso e a festa que é só o fato de estar por aqui, mesmo em condições desumanas. Bom ou ruim, antes vivo do que morto, não é assim? Mas era na morte que se materializava a única justiça imparcial, cega, certa e segura. Desde remotas eras, reis, príncipes e faraós tentaram driblá-la, ou disfarçar sua sentença inadiável, sem sucesso.
Aqui nas redes leio texto distribuído pelo amigo espanhol Fernando Roqueta, do autor Ramón Barea, que relaciona as principais vítimas das grandes pestes contemporâneas. A Aids, no começo dos anos 80, que matava viados, putas e drogados. A epidemia de Ebola, em 2016, que atingia negros e os que se metessem por esses países exóticos, ou a grande crise de 2008, que era, afinal, uma calamidade contra os pobres. Assim, agora estamos diante de uma ameaça que foi para o coração da vida ocidental e desequilibrou toda a segurança que os donos do mundo ostentavam até então. Diz ainda o autor que, enquanto o problema estava circunscrito à China, todos eram risos e piadas, na suposta certeza de que esses males de tão longe jamais afetariam nosso confortável e seguro modo de vida ocidental. Eis que estávamos todos enganados, minimizando esse monstro que agora nos morde os calcanhares sob nossos lençóis. O medo é de todos, sem distinção, porque é real. Não foram as duas grandes guerras e outras tantas, nem os cracks de bolsas, invasões, saques e genocídios que fizeram o homem pensar duas vezes. Foi uma ameaça real que não dá segurança absolutamente a ninguém e, por isso mesmo, a mais justa de todas, como a morte.
É a partir destas cinzas que retomaremos um mundo novo. Ou não.

2 comentários:

sonia pedrosa cury disse...

Luciano,
Bom demais ler seus textos! Não dá vontade de acabar!
Beijo
sonia.

Luciano Correia disse...

Obrigado, Sônia. Idem em relação ao seu blog Um Lugar no Mundo, o melhor blog de turismo do mundo