sexta-feira, 27 de março de 2020

Anotações sobre o fim do mundo (I)

Em condições normais de temperatura e pressão, só a literatura salva. Só ela nos socorre de um mundo modorrento. Ainda mais nos tempos em que ele mesmo, o mundo como ele é, nos ameaça com o velho clichê: ruim com ele, pior sem ele. De modo que, para me acompanhar na solidão compulsória do vírus do fim do mundo, convidei novamente ele, que já vem frequentado muito minha casa nos últimos anos. Marcelo Mirisola e seu último (ou mais recente): Hosana na Sarjeta. Para o distinto público, ofereço esses aperitivos:
"A questão é a seguinte. Em Paulinha caía bem a figura da puta triste, era como se aquela garota de vinte e poucos anos incorporasse a tristeza do mundo quando olhava de dentro dos seus olhos para os olhos de quem lhe pedisse um cigarro, um dedo de prosa ou socorro, e o engraçado é que os incautos, no final das contas, seguiam esse roteiro: cigarro, prosa, socorro. Não foi diferente comigo. Ela absorvia os despojos e as esperanças de quem a solicitava, engolia tudo. Daí emergia sua majestade.
Num belo dia, Paulinha disse que precisava conversar seriamente comigo. Explicou-me que recebia cinco entidades; agora, só lembro da cigana Sarah e de outra chamada tia Alzira, a dengosa. Acho que nem o Fernando Pessoa incorporava tanta gente. O problema é que, por conta de sua quíntupla personalidade, às vezes ela "estava mas não estava" diante de mim... e eu poderia "estar mas não estar" diante de Sarah, a cigana, de tia Alzira e sabe-se lá de quem mais.
Uma noite, Paulinha Denise bebeu além da conta. A cigana Sarah manifestou-se pela primeira vez. baixou majestática e implacável, à queima roupa:
- Você nunca vai amar ninguém nessa vida.
Ainda bem que Paulinha havia me prevenido. Safo, respondi na lata:
- Tá certo, cigana. Mas agora vou te comer, vira de lado aí."

2 comentários:

sonia pedrosa cury disse...

Realmente, a literatura salva!
A gente esquece da vida e viaja...
Escreva mais. Luciano... muito mais!
Grande beijo
sonia

Luciano Correia disse...

Oi, Sonia! Pretendo escrever, só preciso de leitores. Sem leituras, penduro as chuteiras. Besos!!