Aos vinte anos, tudo é festa. Até mesmo a rotina tem uma graça incomum,
que um dia, por fim, nos larga na estrada. De manhã eu caminhava todo o Corredor da
Vitória, contornava o Campo Grande e pegava o Circular R-1 na Araújo Pinho, no
Canela, para uma viagem de quase uma hora até o Centro Administrativo da Bahia,
onde me aguardavam as coroas do Centro de Informações e Estatística da
Secretaria de Planejamento do Estado. Era estagiário, mas era o único homem
reinando num harém de velhotas fogosas, as conversas mais safadas, como nos
romances de Jorge Amado. Depois chegou um estagiário de nível médio, Luis
Moura, hoje aracajuano, instalado no escritório local do Diese. Luis disputava
comigo as atenções da colega Deonísia, uma baixinha ainda mais sibite,
chicleteira e encrenqueira, odiada pelo conselho das chefonas. Nunca fomos
agraciados com os favores da morena.
O estágio era minha salvação de menino pobre, sem recursos para custear
meu custo, quase zerado, de tão modesto. Ganhava menos de um salário mínimo,
filava a bóia e lia diariamente os quatro grandes jornais do país (Folha,
Estadão, JB e Globo). Meio dia, no calor
da Bahia, chacoalhava de volta para o Canela, dormindo nas latas velhas da
viação Salvador Cidade do Sol, direto para as aulas na Facom. Às vezes tava tão
cansado, que escondia o inevitável cochilo por trás de uns velhos óculos de
soldador, daqueles bem pretos, moda entre os maconheiros do circuito “Ex-Tudo”-“Café
Teatro” . Meus colegas, sabendo do truque, costumavam tirá-los do rosto e eu
acordava com a sala inteira zoando aquele pobre sergipano.
Às seis ou sete, caminhava de volta para a Residência Universitária da
UFBa, a lendária R1, dependendo da programação que rolava no flamboyant em
frente à escola, uma espécie de curso paralelo ministrado pelos anarquistas que
ali professavam a negação do jornalismo tradicional. Lá estiveram, para shows e
conversas, dentre outros, Jorge Mautner, Galvão dos Novos Baianos e Léo Jaime
em início de carreira. No caminho, o Campo Grande era lindo (pois é, eu via
beleza e uma certa poesia no céu plúmbeo de Salvador, um crepúsculo quente e
úmido, mas inundado de uma estranha alegria). Passava em revista bancas de
frutas e de jornais e mirava a vizinhança rica da Vitória. Por fim, estava no
lugar que eu chamava de casa, o quarto 15 da R1, a residência de muita
história, glórias e paixões, sexo e política, amor e tragédias. Não raro, quando
ainda restava uma fresta de sol, descíamos a ladeira da Barra, eu e meus irmãozinhos
pobres, para um mergulho no Porto, um tapinha, umas cevas, um xamego. Numa dessas
descidas, encontrei Caetano, Gil e sua
entourage, derramados de frescura, fazendo tipo, trocando bitoquinhas. Um
selvagem criado em Itabaiana não poderia concluir outra coisa: e eles são
viados?
O Porto da Barra foi meu território mítico, o lugar do encantamento e dos
grandes romances. Era ali que debatíamos as coisas do Brasil. Era o fórum da
esquerda light (ou, se querem, festiva sim, sem culpa), dos acertos do finde e
das festas gratuitas numa cidade que ainda não era tão imensa e tão bruta, uma
Salvador que, acreditem, a gente dominava como nossa. Dali saímos uma vez,
véspera de semana santa, direto para o outro lado da ilha, em Berlinque, onde
ouvi a garota-mais-linda-de-todos-os-santos-da-Bahia cantar “Você é linda”, de
Caetano, quando as rádios mal conheciam. Dali saímos, outra vez, para um
acampamento totalmente outsider, com barracas precárias e sem comida, levados
pela vontade de passar o fim de semana fazendo amor com nossas namoradas. Três
dias comendo abóbora crua com arroz doado pelos moradores, e o sexo, a cada sessão,
lavado numa romaria em grupo nas águas da Baía de Todos os Santos. Cabelo ao
vento, gente jovem colorida: roupas pra que te quero. Do outro lado, as luzes
de nossa ribalta soteropolitana tilintavam outras alegrias que nos deixavam
saudosos, a vontade de estar lá também, fruto de uma impermanência latente.
Ontem voltei ao Porto da Barra, trinta anos depois, para um mergulho que
lavou minha alma num território que parece o mesmo, a mesma fauna humana, os
mesmos trejeitos da velha Cidade da Bahia. É incrível, mas avistei vendedores
que conhecia dos anos 80, meninas que se tornaram mães ou avós, ainda com uma graça no jeito de levar a vida, talvez
por obra daquela maresia única, o mesmo cheiro que me invadiu de saudades. Pelo
menos aqui, Caetano, eu não canto “Triste Bahia...”. Porque todo porto é feliz.
Um comentário:
Eu vi Santa Bárbara no céu e Luciano Correia na terra. Eu vi.
Alguém duvida?
Nino.
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