sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A incrível história do gato Tom (Uma historinha para a internet em cinco capítulos)

Capítulo 1
Era começo de dezembro de 2015. Eu chegava em casa no final do dia e, ao me dirigir à porta principal, dou com uma algaravia de gatos em estado de extrema excitação, entre miados, grunhidos, papos e sopapos, enfim, uma incontornável divergência instalada entre os bichanos. Eram uns dez, pelo menos. Enquanto tangia a gataria com ameaças de tapas e pontapés, um bebê de poucos dias afastou-se da bagunça e conseguiu entrar comigo em casa. Eu, que jamais prestara atenção no focinho de um gato, constatei: era lindo! Bonito e manso, o desprotegido filhote que, a ver pela indiferença dele em relação ao bando, e vice-versa, estava no mundo sem pai nem mãe. O ambiente era tão hostil que, vá lá, o pobre gatinho viu na minha carranca a possibilidade de um abrigo, quiçá, num verdadeiro milagre, um pires de leite.
Foi o que fiz. Comovido com tamanho abandono, e já tocado pela ternura do pobrezinho, arrumei um vasinho de leite para o sem terra, sem lar e sem família. Para quem vinha de uma guerra civil de gatos, tava no lucro, de modo que não deu outra: resolveu ficar. Antes de seguirmos adiante, preciso dizer de minha anterior relação com animais, ou, para ser justo, a ausência dessa. Como meus pais jamais gostaram de chamego com gatos ou cachorros, fomos criados sem a presença desses bichos, situação que favorece até uma certa repulsa, se não a indiferença. Adulto, já dono dos meus terreiros, passei a vida lutando contra a invasão dos gatos do meu condomínio à minha casa, santuário da racionalidade e lugar de todas as práticas humanas, menos as animais.
Capítulo 2
Ficou célebre meu combate às centenas de gatos que sempre provoaram o condomínio, improvisando armas que foram desde o uso de baleadeiras, cujas balas eram as castanhas dos pequenos cajus desta celebridade aracajuana que vem a ser meu cajueiro, tão famoso que só falta ganhar um nome. Um chicote, que no tempo de menino chamavam de “macaca”. E fogos, muitos e variados fogos. Em geral, os traques “bebés” ou o antigo Peido de Véio, mas umas vezes eu comprei aquelas pistolas com vários tiros, até que, num dia de batalha cerrada contra os invasores, detonei um foguete e mirei pelo lado errado. Como estava praticamente encostado à parede, as bombas bateram na parede e explodiram sobre este ex-quase-criminoso. Até hoje carrego uma cicatriz no braço esquerdo, graças à minha imperícia na elementar operação para soltar uma pistola.
Desisti das bombas, mantive o traque Bebé, mas, volta e meia, experimentava a cara feia de algum vizinho, incomodado pelos papocos que eles - não eu, claro – julgavam impróprios para certos horários. Daí apelei para o Chumbinho, veneno falsamente proibido, posto que o que mais se ouve quando estamos no Mercado de Aracaju são as ofertas de “chumbinho para matar ratos”. Chumbinho para matar gatos, pensei eu, de dentro de minha maldade. Cheguei a comprar três vezes, e em todas elas o carregamento foi jogado fora. Numa das vezes, instalou-se em casa uma verdadeira discussão filosófica entre mim e a eterna “funcionária” Geudice (não é assim que a classe média se refere às “trabalhadoras do lar”? – ops, outro eufemismo!) Geudice, do alto de sua incontestável autoridade, tipo mais moral que o dono da casa, disse logo: “Eu não boto. Matar gato dá sete anos de azar”. Eram nove, na época, os bichanos cujas almas eu encomendara ao diabo. Tentei negociar: “Mas você será só a executora. São quatro anos de azar para o mandante e três para o executor”. Ela fez as contas: três vezes nove, 27 anos só pra ela. “Sem comércio!”, bradou a poderosa Geudice, encerrando a questão. Como meu coração mole não sobreviveria ao sofrimento dos gatos, dispensei a arma química para sempre.
Capítulo 3
Noutro tempo, um vizinho meio psicopata, policial federal, tinha muito mais aversão aos gatos do que eu. Na verdade, tinha verdadeira obsessão. Certa vez, gastávamos um sábado entre os vapores do álcool na sua varanda quando uns gatos se aproximaram para ximar uns restos de churrasco. Ele imediatamente foi tomado pela cólera e, nem sei de onde, sacou de dentro de suas roupas um pequeno e brilhante revólver que minha completa ignorância em armas supunha ser um 22. Se eu já estava incrédulo, fiquei sem palavras quando ele apontou o revólver e disparou uns cinco ou seis tiros no infeliz animalzinho, na verdade um sortudo, porque a péssima pontaria do policial (péssima pontaria do policial: olhe eu aí de novo com minhas aliterações) fez com que nenhum disparo o atingisse.
O susto serviu para que eu encerrasse essa beligerante relação com os bichanos, embora ainda seguíssemos cada qual no seu quadrado. Até que... até que o Tom entrasse em minha vida. Sim, porque vocês viram que rolou um clima, tipo amor à primeira vista. Tom não só dormiu aquela primeira noite, como nas noites seguintes, salvo as trágicas vezes em que o destino nos afastou – mas essa é uma história para os capítulos finais. Fui me afeiçoando pelo órfão, certo de que ele me havia tomado por pai e mãe. Logo, dei-lhe o nome: Tom, desenho animado de minha adolescência, o herói mau caráter que o mundo inteiro curtiu.
Ora, se eu não entendia xongas de gatos, porque diabos ia saber que existem gatos machos e gatas fêmeas? Pois meu novo amigo, ou filho, era uma gata, com tetinhas e xibiu. Animal extremamente popular no Sol e Mar III, logo vieram me notificar de sua condição feminina. Mas aí Inês já era morta. Ficou Tom, Tom Souza Correia, e pronto. Mesmo porque, nesse mundo politicamente correto, com a geração trans incorporando direitos e conquistas, qual a importância de uma inocente gatinha se chamar Tom? Na UFS, tenho alunos que vestem saias longas, com penteados cocó, batom vermelho e unhas pintadas de roxo. Pela fidelidade ao conjunto da obra, imagino que também vestem calcinhas. Mas deixemos meus alunos em paz, que não quero confusão com essas pestes briguentas...
Capítulo 4
A partir daí nosso amor foi crescendo, fazendo com que eu sentisse saudade quando passava um dia sem vê-lo. Nos fins de semana, quando vou visitar a avó de Tom em Itabaiana, Dona Afra, ele fica entregue à vida mundana. Na volta, vejo logo as manias feias que aprende com os gatos de rua. Coisa imprópria para um gato aristocrático, de pelagem rara e olhar luminoso, digno de capa da National Geographic. Tom é um gato de personalidade, temperamento forte e opiniões definitivas. Vem dele as poucas críticas dirigidas à mulher que manda lá em casa, Aline, a popular Bebê. Bebê é uma santa, em paciência e virtudes, mas, mesmo assim, o gato Tom sempre acha alguma coisinha para reclamar. Eu, obediente e fiel, faço cara de paisagem.
Mas, mesmo nas histórias sobre animaizinhos, a felicidade não dura para sempre. A minha durou até o domingo fatídico em que a família do caseiro de uma propriedade em frente o achou muito engraçadinho e resolveu roubá-lo. Desde que demos pelo sumiço, eu e a Bebê ficamos inconsoláveis. Contratei os serviços dos detetives Miúdo, Dija, Tonho e Nô, amigos funcionários do condomínio, que empreenderam minuciosa caçada pelas redondezas, até que eu mesmo desse com os costados na casa dos amigos do alheio. Já ia armando um barraco, mas, quando vi a filha do caseiro nervosa explicando porque levara o gatinho, desarmei o espírito. E o dito ficou pelo não dito.
Capítulo 5
A segunda agonia veio em novembro passado, quando eu decidira, depois de muitos anos sem saber o que são 30 dias de férias, passar todo o mês na Europa, perambulando pelos meus botecos e cafés de Espanha, Portugal e Andorra. Na terceira semana, com a metade de minha programação ainda por cumprir, sou fulminado pela notícia de um novo sumiço. A Bebê já ligou aos soluços, para que tenham uma ideia da tragédia que se abateu sobre aquele lar que um dia se chamou felicidade. Foi um alvoroço, conforme denunciado aqui na delegacia policial do Feicebuque. Quando, três dias depois, Tom reapareceu do nada, assustado e faminto, eu já gastara o resto do meu dinheiro com uma nova passagem, já que a remarcação da volta resultaria mais caro. A propósito, um anti-comercial: a pior companhia aérea do mundo atende pelo nome de Air Europa.
Dias depois vivemos novo infortúnio, com a suspeita de que nosso Tom estivesse com raiva. Após gastar outra pequena fortuna na clínica da Pio X, só depois de alguns maços de reais os veterinários de plantão concluíram que, na verdade, Tom estava no cio. Os “doutores”, como os pais, esqueceram que Tom era uma fêmea na fina flor dos maus pensamentos.
Desde então, Tom segue sendo a alegria do lar, ora exigindo o luxo que nem os pais ostentam, ora armando crises de ciúme, outras vezes querendo impor suas vontades a todo custo. Um gato maduro, de um ano e dois meses, senhor de si, o rei do pedaço.
The end


Um comentário:

Anônimo disse...

Texto impecável! Só uma observação: muito bom ver um coração amolecer ao longo do tempo....
beijo
sonia pedrosa