Éramos
três, os três mosqueteiros, no dizer do “seu” Siqueira, o festeiro e gentil
senhor que vinha a ser o pai de Berlange, Solange, Sirlange, Blanar, Bismarck,
Berilo e Shirleide. Seu Siqueira era um classe média de minha adolescência em
Itabaiana, funcionário do SESP, sócio dos clubes da cidade, animador de
carnaval, bom de bico e de frevo. Nossas famílias eram amigas, laços
fortalecidos pelo fato de Solange ser colega de sala de minha irmã mais velha,
Marise e eu por ser colega de Blanar nos seis dos sete anos que estudamos no
Murilo Braga. Ele foi meu primeiro amigo de Itabaiana. Lembro que deixamos Macambira
em novembro de 1971 e viemos morar em Itabaiana justamente para que eu e meus
cinco irmãos pudéssemos estudar.
Naquelas
tardes tristonhas de dezembro de 71 eu perambulava pelos vários campinhos de
grama e areia que circundavam o estádio Presidente Médici em busca de uma
pelada de meninos mais fracos que me aceitassem “na linha”, porque pra jogar de
goleiro eu preferia não jogar. Foi ali que conheci um menino introspectivo, tão
inteligente quanto esquisito para sua pouca idade, meses mais velho do que eu.
Desde a primeira pelada, ficamos amigos para sempre, uma amizade de irmãos que
assistiu crescermos acompanhando a vida um do outro, desde as primeiras
paqueras, casamento, filhos, viagens e aventuras. E música, muita música
pontilhando desde sempre, inclusive com incursões por bandas, que naquela época
chamavam de “Conjunto”. Foi numa dessas que minha total falta de ridículo me
fez subir no palco da Associação Atlética para tocar um tambor. A música era “Black
Côco”, uma cujo refrão cantava “Black coco/Black coco tá”.
Blanar
desenhava como ninguém mais da minha geração, só perseguido por outro garoto
com cara de cientista maluco, Vicente de Cajuzinha. Desenhou réplicas de todos
os carros de Fórmula 1 da temporada de 1972 para jogarmos uma espécie de ludo
montado numa pista de corrida, gastando as tardes que deveriam ser de estudo
entre o ronco dos motores, produzido pelas nossas gargantas, com direito a
narração minha. Eu, nacionalista que sempre fui, torcia pelo Emerson Fittipaldi,
enquanto ele, amante da música estrangeira, era fã de Jackie Stewart, o escocês
voador, nome que ele emprestou para pôr no filho mais velho. Depois veio o
Ajax, o timinho da turma do Murilo, um time “de camisa”, como se dizia na
época, com números e escudos pintados pelo nosso pintor oficial. Blanar também
chegou na fase de pintar quadros, alguns muito bonitos, e de ilustrações que
lembravam, mesmo naquela isolada Itabaiana dos 70, as imagens de Salvador Dali,
que só conheceríamos muitos anos depois.
Daí
veio o terceiro mosqueteiro, o menino Marcos, vindo de Aracaju, o rico – para os
padrões locais – filho do seu Edmundo da Padaria. Marcos, intelectual precoce,
de raciocínio rápido e ousado, montou alguns dos mirabolantes planos que
executamos naquela aurora de nossas vidas. Como num sábado em que fomos para um
casamento em Penedo e, por não termos gostado da festa, voltamos na mesma noite
para alcançarmos o baile da Atlética. O Opala vermelho do pai de Marcos travou
a marcha na terceira (acho que chamavam esse defeito de “encavalou”, algo
assim, sei lá...) e viemos na terceira desde a bela cidade histórica alagoana,
inclusive para subir e descer da balsa. Chegamos na serra ainda a tempo de
tomar umas tabocas, como se chamava então a recusa das meninas em ir dançar com cavalheiros de nossa estirpe. De Alagoas a Sergipe, Opala voando guiado por um jovem motorista
de ... 15 anos.
Noutra
feita, em pleno carnaval de 1978, fomos “tomar cachaça” em Frei Paulo, famosa
na época pela beleza das mulheres, que nossa juventude maldosa e boca suja
dizia ser as mais safadas da região. Contávamos todos, eu, Blanar, Marcos, Tonho
de Zé Meu Mano, Jorge Madalena e Francisco, 17 anos, mais ou menos. Nessa época
Frei Paulo tinha um delegado maluco, um doente mental com fama de valente e
arbitrário. Logo estávamos bem instalados num bar de esquina da aprazível Frei
Paulo, cada um empunhando um instrumento, eu apanhando de um tamborim. Minhas
habilidades com baquetas vinha desde a banda marcial do Murilo Braga, três anos
consecutivos tocando caixa, que, na hierarquia das bandas de música, vinha a ser
muito superior aos simplórios tocadores da marcação.
Eis
que o vigor com que cantamos o refrão chamou a atenção do delegado psicopata,
que, para nosso incrível azar, passava nessa hora pela porta do boteco. “Bota a
mão nas cadeiras/Oba/ Bota a mão nas coxinhas/ Oba / Bota a mão no lê lê lê /
Cadê você? Olhe eu aí/ Cadê você? Olhe eu aí”. Não tivemos tempo de ir além da
mão no “lê lê lê”, porque o brutamontes invadiu o bar bradando impropérios e
safanões. Meu castigo veio do meu próprio instrumento: tomou-me as baquetas e
em seguida me surrou violentamente. Depois, mais calmo – se é que um homem
desses tinha momentos de lucidez – parou com a pancadaria, mas cumpriu sua
promessa: levou Blanar preso. Imaginem minha dificuldade em explicar ao seu
Siqueira que seu filho estava preso na cadeia de Frei Paulo.
Desse
tempo ainda guardo as tardes e noites perdidas para preenchermos, anualmente, a
importante lista das meninas mais bonitas de Itabaiana. Era uma lista
minuciosa, cheia de critérios técnicos e estéticos, num refinamento que fez
Blanar, achando pouco a lista das mais mais, criar uma espécie de Segundona, o
time B das minas mais guapas da serra. No total davam umas cem garotas, que, à falta
do nome correto, a gente nomeava com designativos interessantes, nomes como "A menina da praça" ou "A garota da bicicleta vermelha". Foi nesse mesmo tempo que criamos, no Murilo
Braga, o jornal Cebolão, em mimeógrafo, que chegou a tirar 1.200 exemplares e
nos rendia alguns trocados. Foi com essa renda que comprei, para desgraça da
música, meu primeiro e único violão (o segundo, e atual, foi roubado de Paulo
Lobo, que o roubou do saudoso Neri, mas essa já é outra história).
Nesse
pequeno violão Giannini eu aprendi algo como umas 50 músicas, a obra de
Belchior, algumas de Caetano, coisas que o canalha do tempo me fez esquecer,
para sorte dos ouvidos próximos. Com a mesma mijorna amealhada com a venda de
jornais também fomos a passeios a Propriá, terra natal de Blanar e, no nosso
arroubo mais arrojado, a Maceió, para marcar nossa primeira saída do estado de
Sergipe.
Blanar
depois enveredou pelas filmagens, um dos primeiros que fez isso em Aracaju nos
anos 80, inclusive ganhado um dinheirinho, para reforçar a renda de funcionário
do Banco do Brasil. Em 1985, na formatura de Papai em Letras pela UFS, enquanto
eu e toda a família nos emocionávamos com aquela imagem de um pai quase
sessentão vestindo beca, Blanar irrompeu na quadra do ginásio Constâncio Vieira
para documentar essa que foi, sem dúvidas, uma das datas mais memoráveis da
família de João Correia.
São
muitas histórias e lembranças que eu não teria condições de trazê-las aqui,
como do tempo em que, nas noites de São João, por não termos nenhum programa
mais interessante, percorríamos as ruas de Itabaiana, do centro à periferia,
vendo as festas e fogueiras das famílias (festas e fogueiras das famílias? Estou
copiando o mestre Cabrera Infante, rei absoluto das aliterações?). Programa
bobo, simples e sem nada mais marcante, além da alegria das pessoas em volta
das fogueiras. E para que essa história aí não termine tão insossa, surge, num
dos anos em que repetimos a peregrinação junina, a figura do viado Zé Baixinho.
Escrevo assim porque, naquele tempo, sem a incorporação do politicamente
correto ao cotidiano, era comum as pessoas se referirem assim aos célebres
homossexuais que alegravam suas cidades. Pois num desses nossos passeios
Blanar, que, como eu, tinha o hoje feio costume de cuspir e escarrar, escarrou
justo na hora em que passávamos pelo temperamental Zé Baixinho, um homossexual forte e valente, acostumado a bater em muito homem, quebrando, portanto, a crença no afeminado molenga. Pois não
deu pra ninguém. Zé não teve tempo ou coragem de resolver a parada na hora, mas
em outra ocasião, ao me encontrar na rua, não se furtou de advertir, na sua
forte gagueira: “Diga àquele filho de Siqueira que eu quebro ele todo da
próxima vez que ele cuspir quando eu passar”.
Blanar
foi trabalhar pela última vez em 29 de dezembro passado, dia de sua
aposentadoria no Banco do Brasil, onde deixou incontáveis amigos. Só conseguiu
cumprir parte da jornada, porque não se sentia bem. Viajou com a esposa Edilene
no reveilon e, novamente, teve problemas de saúde. Foi para um hospital e, ao
chegar, foi logo transferido para a UTI. Na manhã de ontem, sexta feira, 6 de
janeiro, não resistiu à virulência de um linfoma e foi embora com estas e
outras histórias minhas. Não tenho a menor dúvida de que também comecei a
morrer a partir de ontem.
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