sexta-feira, 9 de julho de 2010

A morte e o céu segundo Saramago

Do grande José Saramago, falecido recentemente, no seu luminoso “As pequenas memórias”.

Falando sobre o avô, homem simples, analfabeto, mas sábio.

- Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sobre a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?

Para a avó:

- Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito eu tenho tanta pena de morrer.” Assim mesmo. Eu estava lá.

Sobre os bichinhos de criação da família:

- Entre os bacorinhos acabados de nascer aparecia de vez em quando um ou outro mais débil que inevitavelmente sofreria com o frio da noite, sobretudo se era Inverno, que poderia ser-lhe fatal. No entanto, que eu saiba, nenhum desses animais morreu. Todas as noites, meu avô e minha avó iam buscar às pocilgas os três ou quatro bácoros mais fracos, limpavam-lhes as patas e deitavam-nos na sua própria cama. Aí dormiriam juntos, as mesmas mantas e os mesmos lençóis que cobririam os humanos cobririam também os animais, minha avó num lado da cama, meu avô no outro, e, entre eles, três ou quatro bacorinhos que certamente julgariam estar no reino dos céus...


Saramago & Samarone

     Saramago conta uma coisa interessante no mesmo livro. Seu pai quis registrá-lo na distante aldeia de Azinhaga, em Portugal, com o seu próprio nome: José de Sousa. Mas o tabelião, chegado aos vinhos e dono de ironia perversa, acrescentou por sua conta o Saramago, que era uma espécie de apelido pelo qual a família era conhecida na região. Somente quando marchou para a escola, anos mais tarde, é que o pai, frente à dificuldade de encontrar o registro do seu pequeno José de Sousa, se deu conta de que não havia ninguém com este nome, e sim um certo José de Sousa Saramago.
     O futuro escritor abandonou então o Sousa e ficou só José Saramago, mas o espetacular da história foi a atitude do pai: diante de tal imbróglio resolveu, ele também, incorporar Saramago ao seu anterior José de Sousa. E assim verifica-se o primeiro caso no mundo em que filho dá nome ao pai.
     Em Itabaiana, nossa Azinhaga serrana, ocorreu o mesmo com o hoje médico Antônio Samarone, que deveria se chamar, no registro, Antônio Fernando de Santana. Até hoje irmãos e pais do rapaz o tratam por Fernando. Mas só quando ele, já grande, foi procurar o registro para se matricular no ginásio, é que a mãe descobriu que não tinha nenhum Antônio Fernando na caixa de sapatos onde se guardavam os documentos oficiais da família de “seo” Elpídio Santana. Dona Santana, como todas as mulheres de Itabaiana, de temperamento forte, confiou a Elpídio a tarefa de registrar o menino. Naqueles tempos, nomes como Fernando eram raridade de lugar civilizado. Na aldeia do agreste sergipano vicejavam os Antônios e Josés, nomes de santos a quem as famílias invocavam, na esperança de que, pelo menos, seus bruguelos vingassem. Não deu outra: entre a casa e o cartório de Serapião, Elpídio esqueceu o complicado nome que teria de dar ao filho e, na afobação, apelou para o corriqueiro: Antônio. Zeloso da própria pele, no entanto, jamais contou à mulher sobre o esquecimento e o nome que ficara registrado.
     Mas por essas alturas o boleiro e fanático pelo Fluminense já ganhara, das ruas, outra alcunha: a do grande meio campista do clube carioca. Depois, aproveitou a primeira campanha política que disputou para apor no papel, não o Fernando da mãe, mas o Samarone dos gramados.


Coisas que só têm Itabaiana

     E é o mesmo Samarone quem lembra a escalação do memorável Cantagalo, hoje extinto, junto com seu inesquecível Chico, covardemente assassinado há cerca de um ano. Lá pelos anos 60 o rival local do Tremendão da Serra chegou a ter toda sua escalação só com nomes iniciados em “B”, conforme abaixo:
     - Boló, Boião, Baldo, Biolo e Boca-de-Cabelo. Benedito e Bobô; Bibi, Boanerges, Beto e Biriba. O treinador era Boca Rica, o massagista Birunga, o roupeiro Bonga. E o presidente, Chico, que consideravam Broco.

Luciano Correia

2 comentários:

Maria Eugênia Deda disse...

Delícia de texto! Parabéns.

sonia pedrosa disse...

Luciano, por favor, escreva mais!!!!