segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O blog como um roteiro para Madrid

Este blog, como anunciei no começo, objetiva participar do espaço público, nesta nova configuração que ele assume nos idos atuais. Não se explica, pois, num diário de Madrid, onde me encontro, “exilado” para o doutorado-sanduíche. Mas também não deixará de fazer este diário, pela riqueza da experiência, a oportunidade de viver uma cultura distinta da nossa numa condição que não a do turista viajante, senão como morador, residente. Ademais, os leitores – e cada vez mais sei que existem, se não em quantidade, mas em qualidade apreciável – não querem saber do trololó árido da academia, mas dos sacolejos da vida real, do mundo da vida, pelo olhar curioso do jornalismo. Isso basta.

Onde comer?

Não sei. Ou melhor, dentro daquele espírito que elenca grandes restaurantes, comidas famosas e não-sei-o-quê, não sou pessoa indicada a recomendar bons rega-bofes. Aqui ou em qualquer lugar, não conheço a fineza das mesas, e isto não se deve a razões ideológicas (imagine!), se não pelos meus rarefeitos bolsos de bolsista. Sou um freqüentador dos frejes de Espanha, Oropa e Bahia, por uma das poucas injustiças cometidas por Deus, ao me mandar ao mundo na condição de pobre. Para não ficar só no prejuízo, aproveitei para vir a passeio, não a negócio. Dessa parte, portanto, eu entendo um pouquinho.

É que o mundo, tão vasto que é, tem diversão garantida para todos, inclusive a prática da boa mesa. Aqui, caminhando pela cidade, vou encontrando pequenos restaurantes, cujos pratos vou experimentando na base do tiro no escuro. Oras dá certo e termino papando o melhor dos manjares, oras nem tanto, mas nada que me deixe arrependido. Tudo vale a pena, se a alma de quem preparou não é pequena. Mesmo porque, como diria Gil, nada eu acho chato.

Assim, o maior prazer aqui referido não é a degustação de pratos específicos, senão essa busca agradável por locais que já conheço ou trocar esses endereços por outros que surgem do acaso, atravessando meu caminho. Ontem mesmo acordei com uma fome de leão, pensando num vazio argentino. O vazio não tem a nobreza da picanha, portanto, tem um preço mais baixo, mas é tão ou melhor em sabor. No Brasil, só no Rio Grande do Sul que chamam essa parte do boi de vazio. Em Sergipe, já tentei inúmeras vezes, em colóquios com os melhores marchantes de Itabaiana, descobrir o nome que damos a ela, mas até hoje resultou uma dúvida entre fraldinha, ponta de costela e outros palpites. Conheci este restaurante argentino nos jogos do mundial e lá fui algumas vezes com meu amigo Murilo, brasileiro-libanês que me abriu portas nesta cidade. Fica ao lado do metrô de Callao, quase na Gran Via e também perto da Puerta del Sol. Para meus padrões de bolsista da Capes, é o máximo de concessão que posso fazer: gastar 12 euros num prato. Meu padrão fica aí entre 8 ou 9 euros.

As surpresas

Minha terrível fraqueza de personalidade propicia isso: saio de casa para ver um filme e termino vendo outro. Com as comidas não seria diferente. Enquanto salivo pensando no vazio mal passado e as tapas que o simpático garçom argentino (sic!) me serve antes, vou fazendo o caminho a pé, desde minha casa, que não é tão longe assim do miolo da cidade. No caminho, perto da estação Príncipe Pio, sou fatalmente afetado pelo cheiro que sai de um frejezinho na calle Paseo de la Florida. Pronto, ali tombei seduzido pela paella valenciana e pela fome. Outro dia traço o vazio dos argentinos.


Cuzcuz

No Rio Grande do Sul, precisamente no prédio da PPG em Comunicação, tornaram-se célebres os manjares que promovi, desde os melhores inhames enviados pelo correio por dona Afra até o riquíssimo cuzcuz que, com os tempos, se tornou uma marca de meus dotes culinários. Aprendi com o professor José Costa, petista número um de Itabaiana, que fazia um parecido na sua casa-república e chamava de “cuzcuz moçambicano”. Peguei a receita e enriqueci dezenas de vezes. Hoje o de Zé Costa nem chega aos pés do meu. Aqui, experimentei o marroquino, muito bom, cheio de pedaços de carne e legumes, uma verdadeira sopa derramada em cima, mas me pareceu uma confusão dos diabos. Cuzcuz tem que ser como o meu: rico, mas íntegro. Foi a esta receita que meus colegas e professores da Unisinos se renderam e, antes de me conferirem o pretendido título de doutor, já me deram o de fantástico chef de cozinha.

Anteontem, sexta, fui cumprir uma promessa junto aos amigos Luís e Acácia (donos da casa) e Flávia, gaúcha há anos estabelecida na Europa. Cuzcuz com enxertos de queijo brie, ovos caipiras comprados numa quitanda perto de casa e preparados à la dona Afra (que os metidos a besta chamam de poché, assim mesmo, afrancesado e afrescalhado). Só a lingüiça é que me envergonhou, porque não era a que no sul chamam de “da colônia”, minha preferida, mas uma linguicinha safada de porco, sem gosto nem consistência. E para empurrar o grude goela abaixo, vinho, muito vinho, que não somos de ferro.


Zé Costa

A lembrança do cuzcuz moçambicano de Zé Costa me traz outros fatos curiosos sobre esta figura, fundador do PT em Itabaiana, como eu. O professor já era um vitalino renitente, colecionador de namoradas, mas sem compromisso com ninguém. Assim, sua casa-república, antro de comunistas e alternativos da aldeia serrana, vivia cheia de gente, do inesquecível Maceta até o próprio presidente Lula, de quem lembro bem, no quintal, segurando uma garrafa da bagaça e convidando seu companheiro de copo: “Macepa, Macepa”. Sim, Lula não tinha obrigação de acertar o nome do genial Maceta. Isso aí pelos anos de 1980 ou 1981. Desse dia, para que não me deixem mentir, guardo um livrinho de Amílcar Cabral, autografado por Lula, àquela altura já sob efeitos da gloriosa.

Mas o curioso que vem à memória agora é a contradição latente no anárquico lar de esquerda do camarada Zé Costa. Como não desse conta da bagunça constante, contava, para ajudar nas lides domésticas, não exatamente com uma empregada, mas nada menos do que um mordomo, o tranqüilo Zé Alves, embora fosse ele, também, comunista praticante e íntimo dos copos. E a todos que chegavam, Zé Costa, sem cerimônia, não tergiversava: “Este é Zé Alves, nosso mordomo”. Assim era.


Vou comer

Escrevo, no domingo, às três da tarde. E um vazio, não existencial, mas de sólidos, faz lembrar que tenho estômago e que é hora de papar. Como ontem, vou sair e pensar que caminharei até o centro para meu restaurante argentino. Finalmente o vazio, se minha fraqueza de caráter permitir.

Um comentário:

sonia pedrosa disse...

Que delícia de texto, Luciano! Também gosto disso... de deixar que o destino se encarregue de me mostrar os lugares, de descobrir os restaurantes, os botecos...
Beijossssssssss