Os pedaços da cidade . É desaconselhável conhecer um lugar pelos seus subterrâneos . Não me refiro aqui metaforicamente aos estertores de uma cidade , onde dormem os segredos e fascínios de todo lugar manhoso , mas a percorrê-la de metrô , de uma estação a outra . De todo modo , foi assim que tive de fazer antes de resolver coisas básicas na minha chegada , onde o tempo urgia e não cabia, àquela hora , olhares mais demorados. E se tem uma riqueza nesta cidade , trata-se do seu metrô , que cobre toda a extensão do perímetro urbano e até mais , neste caso , pelos trens chamados de Renfe, que são metropolitanos.
Foi uma surpresa agradável quando comecei a explorar a cidade por cima e fui ligando pontos , referências , locais onde eu já plantei histórias curtas, nesses dois meses. Esse prazer é ajudado em muito pelas minhas caminhadas quase diárias . No Brasil eu fazia isso em academias , me conformando com a paisagem das chicas com idade de serem filhas. Aqui , decidi isto : se vou caminhar , que seja pelas ruas . E que seja por caminhos sempre diferentes . Assim , um admirável mundo novo se descortina para mim a cada dia .
No Cine Renoir, fui ver “Gainsbourg”, a bela história do cantor francês outsider que namorou Brigitte Bardot - mas isso é só uma passagem desse artista fantástico . Garoto precoce , pianista , amante desde cedo das belas mulheres (contrastando com sua feiúra extraordinária ), Serge Gainsbourg ficou conhecido pela minha geração com a música “Je T’aime - moi non plus”, proibida pela ditadura , mas que em Itabaiana arranjamos um jeito de ouvi-la nuns compactos simples que alguém contrabandeou. Não garanto, mas havia na aldeia serrana uma figura conhecida como “Tapioca ”, um rapaz modernoso para aqueles anos de chumbo , dono da primeira boate da cidade (“O Buraco ”), que depois foi morar nos Estados Unidos. Acho que “Je t’aime” chegou pelas mãos dele.
A música simula um lesco-lesco erótico que escandalizou o mundo e foi censurada em república de bananas , como o Brasil dos militares . Jane Birkin, linda atriz que arrancou gemidos nos cinemas nos anos 70, fez a parceira musical, depois na vida real , de um casamento atribulado. Enfim , é da vida de um desses homens tocados pela natureza do gênio , que desembarco para entrar no mundo feio e cruel do cinema americano .
Na volta pra casa , a pé (tênis pra quê vos quero?), passo num kebap de uns caras de Bangladesh, onde sou freguês conhecido . Enquanto aguardo o repasto , vejo na TV digital espanhola um enlatadão americano . Que coisa ! Uns 30 caras chegam num lugar e matam o que vêem pela frente em fração de segundos . Balas rápidas e flechas metálicas (sic!) saem de uns verdadeiros canhões . Dois que se encontram à frente (os “artistas ”, diriam os meninos da Itabaiana antiga ), são fulminados instantaneamente. Até aí , bacana . Só que , assim que os gentis rapazes passam adiante , o artista principal (ainda na lógica serrana ) se levanta vivinho da silva. Ora , havia-se feito de morto , que não é lá besta . E o outro ? Furado feito uma peneira , já nas terras de Satanás. Mas nada que não se possa dar jeito , em se tratando de filme americano . O amigo pega então uma arma no chão , um negócio de dar choque , e crava na titela do falecido, por cima dos buracos de bala e tudo . Qual o quê , em questão de segundos , o cabra começa a estrebuchar , só que fazendo o caminho inverso da morte . Daí os dois saem cambaleando, um arrastando o outro . Pouco tempo depois os ferimentos de bala serão pequenos incômodos , que não impedem nosso herói de atacar o inimigo com ferocidade ainda maior . Por sorte meu kebap fica pronto e, ademais , já me bastam de fantasias . Por hoje é tudo .
Luciano Correia
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